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A pereira da Miséria

O jornal O Commercio, edição de 21 de dezembro de 1910, talvez imbuído do espírito natalino, publicou uma lenda húngara, na verdade uma parábola que tenta explicar a miséria no mundo. Eis o texto:

===== A pereira da Miséria =====
Em um logar denominado Vico, existia uma mulher, chamada Miséria, que esmolava de porta em porta, e parecia tão velha como o peccado original.
A mulher Miséria habitava em companhia de um cão, chamado Tarro, em um immundo casebre, sem moveis, tendo um bastão e uma saccola sempre vazia.
É verdade que tinha tambem um pequeno quintal, com uma unica arvore, uma pereira tão formoza que não tinha rival, a não ser no paraizo terrestre.
O unico prazer que neste mundo tinha Miséria era comer os fructos de sua pereira, mas, desgraçadamente, os rapazes lhe roubavam alguns.
Quando ella sahia a pedir, Tarro a acompanhava, menos no outomno, que ficava elle para guardar a casa e a pereira, porém com grande sentimento, pois a velha e o cão se amavam com amôr entranhavel.
II
Chegou o inverno, em que dois mezes gelava e as pedras se partiam de frio; e cahiu tanta neve, que os lobos, impellidos pela fome, entravam nas casas.
Miséria e Tarro soffriam horrivelmente. Uma noite gelava e silvava com intensidade o vento; aquelles desgraçados procuravam dar-se um pouco de calor um ao outro, junto ao logar onde fôro [sic] o fogo, quando bateram á porta.
Em vez de ladrar, como de costume, Tarro levantou a cabeça e agitou a cauda com alegria.
- Pelo amôr de Deus (disse uma voz enfraquecida), abri a um pobre que morre de frio e fome.
- Levantae a taramella, respondeu a Miséria; não se diga que eu não dou pousada a uma creatura de Deus.
O extrangeiro entrou; parecia ainda mais velho e pobre que a Miséria, e não tinha por abrigo mais do que um manto esfarrapado.
- Descançae, bom homem, disse a Miséria, pessimo logar buscastes para descançar, porém posso ainda fazer alguma cousa.
Deu ao velho umas castanhas e uns pedaços de pão que lhe ficaram.
O velho comia com appetite, e Tarro lambia-lhe os pés.
Miséria deu-lhe para dormir umas palhas, e ella recostou-se a um canto para dormir. Pela manhã foi ella a primeira a despertar.
- Nada me resta; que darei a meu hospede? Sahirei a esmolar. Deitou o nariz de fóra; não cahia neve, o céu era limpido e o sol de primavera. A velha voltou para tomar o bastão e viu o extrangeiro de pé, disposto a sahir.
- Que! Já se vae?
- Sim; minha missão acha-se terminada e della devo dar conta a meu amo. Não sou o que pareço, sou S. Lazaro e fui enviado para ver como se praticava a caridade entre este povo. Bati á porta do rico governador, de seus subalternos regedores e todos me deixaram tiritar de frio.
Tu só te compadeceste de minha miséria, sendo tão desgraçada como eu. Deus quer premiar-te; dize o que desejas nesta vida e conseguirás.
- Bemaventurado S. Lazaro, disse Miséria, persignando-se e ajoelhando. Não me admiro que Tarro lhe lambesse os pés. Eu não fiz caridade por interesse, e de cousa alguma necessito.
- Como assim dizes, se nada tens? disse S. Lazaro. Pede: que queres? Queres uma bôa casa, com grande celeiro de trigo? Queres thezouros e honras? Queres ser duqueza, rainha?
- Nada, replicou Miséria, abanando a cabeça.
- Um santo como eu não deve ficar devedor. Falla, ou eu te julgarei orgulhosa.
- Pois que exigis, glorioso santo, disse, tenho aqui uma pereira que me dá excellentes fructos, porém os garotos me os roubam. Permitti que todos que nella subam só possam descer com minha permissão.
- Assim seja, disse S. Lazaro, rindo-se daquella simplicidade. E, dando-lhe a benção, despediu-se.
III
A benção de S. Lazaro foi mais proveitosa a Miséria, que desde então nunca mais voltou á casa com a saccola vasia. Veiu a primavera e logo o verão, o outomno e o tempo das peras; vendo os rapazes que a Miséria sahira com o seu cão, subiram á arvore, colheram fructos e riram-se; mas quando quizeram descer, sentiram-se visgados.
Miséria os encontrou e para castigo os deixou em cima muito tempo, botando-lhes o cão.
Já nenhum voltava depois d'isso e até davam grande volta para evitar a arvore feiticeira.
No fim do outomno, Miséria se aquecia sob sua arvore, quando ouviu uma voz sinistra. que lhe bradava:
- Miséria, Miséria, Miséria!
Voltou-se, vendo um homem alto, secco, amarello e velho, trazendo uma faca grande e larga. Miséria conheceu que era a Morte.
- Que quereis, homem de Deus? disse com voz alterada e medrosa.
- Vamos, Miséria, chegou a tua hora.
- Já?
- Já e deverás agradecer-me, tu tão pobre, tão velha e acabrunhada.
- Não tanto assim. Tenho pão, lenha e ainda não fiz os meus noventa e cinco. Respeito a achaques, me sinto tão forte como vós.
- Ainda melhor estareis no céo.
- Sei o que perco, mas sinto deixar o Tarro.
- Tambem o cão te seguirá. Vamos.
- Permita-me então um momento para apromptar-me; não quero envergonhar-me diante da gente de lá.
- Sim, mas não se demore.
- Ah! Ocorre-me uma idéa. Emquanto me preparo, quer fazer-me um favor? disse a velha à Morte. Desejava que V. subisse á pereira e colhesse tres peras que ali ficam: eu as comeria em caminho.
- Depressa, subo.
- E a Morte subiu á pereira, colheu as peras e quiz descer, porém... que quizesse!
- Ah! Miséria, gritava, ajuda-me a descer. Não sei o que tem esta maldita pereira.
IV
Ao cabo de um mez, todo mundo se admirou de não morrer pessoa alguma, em Vico, e a admiração foi maior, quando se soube que não só em toda a comarca, como em muitos logares da circumscripção, ninguem morria. Veiu o anno novo e tanto em Portugal como na França, Belgica, Austria, Russia e nem em parte alguma morreu alguem.
Passavam-se mezes, annos e todos os enfermos ficavam bons, sem que os medicos soubessem porque.
Quando chegou segunda vez S. Silvestre, todos os homens se felicitavam da immortalidade e celebravam festas nunca vistas.
Quem suspeitaria que era obra da Miséria?
Tudo marchou regularmente.
Havia velhos de cento e dez e cento e vinte e mais annos, cheios de enfermidades, cégos, surdos, patetas insensiveis, que tinham a immortalidade como um mal.
Aqueciam-se ao sol, debeis, alquebrados, os olhos sem brilho, sob o peso de todos os incommodos.
Os fracos permaneciam em suas camas e não havia casa onde não existissem cinco ou seis velhos, que eram os maiores incommodos das familias.
Foi preciso reunir-se os velhos invalidos em grandes hospitaes, e como não morriam, não havia heranças e todos os bens pertenciam a velhos, que os não podiam desfructar.
Com reis velhos os governos se enfraqueciam e as leis se relaxavam; a gente certa de não ir ao inferno, dava-se a todos os crimes, repetiam-se os roubos, incendios, violações, porém nada podia matar nem mesmo os animaes.
Eram tantos os habitantes da terra que não havia mais alimentação; veiu uma fome horrivel e os homens, nús, sem habitação, soffriam atrozmente e não podiam morrer.
Todos buscavam a morte. Decretaram guerras formidaveis; as nações cahiram umas sobre as outras; feriam, mas não conseguiam matar um só homem.
Os venenos e os instrumentos de destruição apenas faziam soffrer; não tiravam a vida.
Os medicos das cinco partes do mundo, para descobrir um remedio contra a vida, propuzeram um premio de muitos mil contos para aquelle que o descobrisse; escreveram-se mais livros do que sobre o colera, mas tudo foi inutil.
Era uma calamidade mais espantosa do que o diluvio, porque não tinha fim.
V
Nesse tempo existia em Vienna um medico mui sabio, que quasi sempre fallava em latim, e chamava-se o Dr. De Profundis.
Uma noite que voltava para casa, de uma palestra em casa do presidente da camara, um pouco alegre, ou distrahido, perdeu-se e foi dar á casa da Miséria, e ouviu uma queixa que dizia:
- Ah! quem livrará a terra da immortalidade, peior que a peste?
O Dr. levantou os olhos e viu a Morte.
- Como? és tú, meu amigo, meu camarada? lhe perguntou: Que fazes, te remechendo nesses ramos?
- Nada, Dr. De Profundis, e é o que me afflige, respondeu a Morte. Dê-me a mão para que eu desça.
- Toma.
E o bom doutor lhe estendeu a mão, porém a Morte deu-lhe tal arranco que levantando-o ficaram ambos presos á arvore, sendo inuteis todos os esforços para descerem.
Os habitantes de Vico observaram que o Dr. De Profundis não apparecia, e, sendo sua falta sensivel, fizeram annuncios por todos os jornaes que dariam grande premio a quem o descobrisse.
Muitos homens sahiram á sua procura e chegaram até á casa da Miséria.
O Doutor os viu e chamou, fazendo signaes com o lenço e gritando:
- Para aqui! para aqui! já tenho a Morte porém... non possumos descendere desta maldita pereira.
- Viva a Morte! gritaram todos.
Davam a mão á Morte e ao doutor, mas estes puxavam e eram todos suspensos, ficando assim a pereira em poucos momentos cheia de homens.
Alguns que ficaram na terra tiveram a idéa de deitar abaixo a arvore, mas debalde.
Olhavam-se boquiabertos e lamentando a sorte dos infelizes, quando foi pelo barulho despertada a Miséria, que foi ver a causa de tal algazarra.
Explicaram-lhe tudo e então comprehendeu o mal que fez sem o querer.
- Eu só posso libertar a Morte e o farei com uma condição. Quero que a Morte não venha buscar nem a mim, nem a Tarro, até que a chame tres vezes.
- Dá-me a mão, disse a Morte. Eu conseguirei que S. Lazaro regule a questão com Deus.
- Descei, repetiram a Miséria e a Morte.
O Doutor, com todos, cahiram como peras maduras.
A Morte se poz a gritar, e todos queriam ser os primeiros, de modo que ella não sabia como entender-se; resolveu crear um exercito de medicos para ajudal-a, nomeando capitão general Dr. De Profundis.
Alguns dias bastaram para que tudo entrasse na furada.
A Miséria continua calada e ainda não chamou as tres vezes pela Morte.
Eis porque a miséria se acha no mundo.
(Duma lenda hungara)


Parte do texto publicado pelo O Commercio - Acervo de Imprensa

Como se vê, tudo tem um propósito no mundo, até mesmo a morte!

MR

Comentários

  1. Genial! Nos tempos em que lecionava na Ulbra, uma das minhas alunas no curso de Letras costumava dizer que não queria morrer, queria viver 400, 500 anos, então, comecei a ponderar como seria triste, alquebrada, ver os demais perecerem. Eu acho que, no segundo argumento, ela me respondeu que "tudo bem, eu morro, professora"!

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    1. É isto mesmo! Morrer é necessário, apesar dos pesares...

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