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A Cachoeira de 1849

O passado é um tempo de descobertas.

Voltemos a 1849. A Vila Nova de São João da Cachoeira era então um lugar de desbravadores, homens que enfrentavam desafios diários para garantir a sustentação de suas famílias e a melhoria do rincão em que viviam. Os vereadores, então em número de sete, apoiados por juízes com diferentes atribuições, eram os responsáveis pela administração pública. Graças às rotinas burocráticas que tinham que seguir, estes homens do passado legaram documentos que são como fotografias, revelando aos olhos de hoje um tempo que não dista apenas no contar dos anos, mas também nos costumes e no modo de viver e de produzir.

Um volume de correspondência expedida pelos vereadores, com data de 11 de maio de 1849, dentre outras coisas, faz um relatório da geografia e da produção da sede e dos distritos da Vila, atendendo a uma exigência contida em circular do presidente da Província, o Tenente General Francisco Jozé de Souza Soares d'Andréa, Barão de Caçapava, que dirigiu o Rio Grande do Sul em duas ocasiões, de 27 de julho a 30 de novembro de 1840 e de 10 de abril de 1848 a 6 de março de 1850:

Francisco Jozé de Souza S. d'Andréa - pt.wikipedia.org


CM/S/SE/RE-006, fl. 186 e 186v
[Anotado em 186]
Nº 47= Ill.mo e Exmº Senr.”= Tendo esta Camara Municipal, em cumprimento á Circular de V.Exª de vinte e quatro de Janrº do corr.e anno, pedido dos differentes Destrictos as informações exigidas na mesma Circular, não lhe foi possivel obter com a perciza brevidade, e só agora he que ella pode levar ao conhecimento de V.Exª as informações seguintes:= 1º Que o principal ramo de criação d’animaes neste Municipio em prº lugar he o gado, e em segundo ultimo são os animaes Cavallares e muares; e que existem dezeceis estancias de gados, e as mais que havião em outro tempo, tendo se repartido p.r muitos herdeiros p.r fallecim.to de seus primeiros possuidores, se achão hoje divididas em o nº de 102 piquenas fasendas de criar: A criação de Ovelhas he deminuta, existindo apenas pequenos rebanhos em algumas fazendas, que aproveitão unicam.e pª o consumo:= 2º Que o genero d’Agricultura mais úzado e mais productivo neste Municipio he a mandioca em prº lugar, e em segdº o milho e o feijão:= 3º Que não ha plantações de cana e nem de Café:= 4º Que não consta existir neste Municipio minas de ouro, prata, e nem d’outro qualquer metal, e só ha indicios de minas de carvão de pedra e talves com abundancia, na estancia denominada= da Capellinha segundo Destricto desta Vª. Ha bastante pedra calcaria, porem só existem dous fornos de Cal em acção:= 5º Que ha em todo este Municipio oito Olerias de telha e tijollo, m.s nem todas trabalhão regularm.e: Olerias de louça não ha, apezar d’áver barro proprio para esse fim:= 6º Que não existem fabricas de generos de industria, se não alguns poucos teáres em que fabricão com escravos tecidos grossos pª vestua=
[Anotado em 186v]
vestuario dos mesmos: ha tambem algumas fabricas de fazer farinha de mandioca a qual he toda consumida no Paÿs, cujas fabricas são montadas por escravos:= 7º Que não consta haver agoas mineraes neste Municipio a essepção de húa fonte discoberta por um monge, no 4º Destricto deste Municipio, no lugar denominado= Campestres, que disem alguns ser agoa mineral. Existem neste Municipio os regatos, sangas, arroios, e rios seg.es: Piquirÿ que divide este com o Municipio de Rº Pardo, Taquarenchÿn, Sarandÿ, Ferreios, Taquara, e Areia que desagóão no Arenal, cujo arroio e igualm.e os de São Sepé e Santa Barbara confluem no Vacacahÿ grd.e: O arroio das palmas, Passo grd.e, e o Lagiado que dezagóão no irapuá, o Capanézinho que desagoa no Capané grande, o arroi do Só e o regato da Tronqueira que dezagóão no Vacacahÿ mirÿn; todos estes arroios, assim como o piqueno regato de S.Nicolão vãoconfluirem no Rio Jacuÿ pela margem direita: Há o regato da forquêta que dezagoa no Butucarahÿ, cujo arroio, bem como os regatos Amorim, Areia, Ferreira, Taboão, Barriga, e o do rincão do inferno, vão confluirem no Rio Jacuhÿ pela margem esquerda: Ha o arroio Toropÿ que divide este com o Municipio de São Borja, e vai dezaguar no Ibicuhÿ, o qual divide tãobem este Municipio com o da Crus-Alta dentro da Picada de S. Martinho: Existem trez grandes sangas dentro do recinto desta Villa com as denominações= do Lavapé, de Mecaéla, e da Bica, bem como outra no 5º Destricto deste Municipio com a denominação= do paredão=, que se torna notavel por sua immença grandeza; alem destas existem outras muitas sangas que por sua piquena importancia, não tem denominações algumas: Rios navegaveis neste Municipio, não ha se não o Jacuhÿ, o qual o he em todo tempo p.r canoas de tolda athe o Passo do m.mo nome, sendo com bastante dificuldade em tempo de sêcca p.r cauza das Cxr.as; e em tempo de cheias podem navegar pelo m.mo Rio, enbarcações da Carga de 50 á 58 Toneladas.= He quanto esta Camara pode informar a V.Exª, que mandará o que for servido= D.s G.de a V.Exª= Sala das secções da Camara Municipal da Villa da Cachoeira 11 de Maio de 1849= Ill.mo e Exmº Senr.” Ten.e General – Francisco Jozé de Souza Soares d’Andréa, Presidente desta Prov.ca= Alexandre Coelho Leal= João Jozé Roiz.’= Jacintho Franco de Godoes= David Jozé de Barcellos= João Antonio Galvão.-

CM/S/SE/RE-006, fl. 186 - Arquivo Histórico

O documento confirma e reforça que a criação de animais era a principal atividade econômica do município, sendo a de gado a maior, seguida pela de cavalos e mulas, então os principais meios de transporte. A criação era desenvolvida em 16 estâncias que tinham sido anteriormente em maior número, reduzidas pelo falecimento dos proprietários e as consequentes divisões entre os herdeiros, resultando em 102 pequenas fazendas. As ovelhas, hoje importantes na produção pecuária, naquela época eram reduzidas a pequenos rebanhos em algumas destas fazendas, cuja criação era apenas para consumo próprio.

Na agricultura, a mandioca era o principal produto, seguida pelo milho e feijão. Plantação de cana, fartamente cultivada no resto do país, inexistia no município, assim como café. 

Minas de ouro, prata e outros metais e minerais constavam não existir, tendo registro de carvão em pedra e, na Estância da Capelinha, abundância de pedra calcária. Havia apenas dois fornos ativos de queimar cal; em contrapartida, oito olarias de telha e tijolo, inexistindo produção de louça, embora registrassem barro propício para tal. 

Nada de indústrias, apenas poucos teares acionados por escravos que produziam tecidos grossos para seu vestuário. Aos escravos também competia o fabrico dos moinhos para farinha de mandioca, as atafonas. 

Os aspectos geográficos dão destaque para os cursos d'água: regatos, sangas, arroios e rios. Sobre as sangas, o relatório fala em três grandes dentro do recinto da Vila: Lavapé, Micaela e da Bica. O único rio navegável era o Jacuí, singrado por canoas de tolda até o passo do mesmo nome, com dificuldade de navegação nos períodos de seca em razão das cachoeiras. Em época de águas normais, o Jacuí dava passagem para embarcações de até 58 toneladas.

Como se vê, o documento acima transcrito traz muitas informações, sendo rica fonte para entendimento da situação da Vila Nova de São João da Cachoeira naqueles tempos. Mesmo que aos olhos de hoje o que foi relatado seja considerado pouco em termos de progresso e desenvolvimento, ainda assim foi suficiente para que, em 15 de dezembro de 1859, ou seja, dez anos depois, a Vila granjeasse o título de Cidade da Cachoeira.

MR

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