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A espanhola

Há 100 anos a grande preocupação dos habitantes do município de Cachoeira era com o surto de gripe espanhola, ou influenza espanhola, a epidemia mais mortal da história. No Brasil, nos dois anos em que ela grassou, morreram dezenas de milhares de pessoas, dentre elas o presidente da República, Rodrigues Alves. Por sua rápida e abrangente disseminação, a gripe espanhola foi reconhecida como pandemia.

O jornal O Commercio daquele ano de 1918, em sua edição de 6 de novembro, traz uma coluna intitulada Influenza hespanhola?


O Commercio - 6-11-1918, p. 1

Influenza? Positivamente sim. Hespanhola? cremos que não. Porque, na verdade, a molestia que Cachoeira hospeda, desde alguns dias, em nada difere da nossa conhecida grippe de todos os annos. E' essa, pelo menos, a opinião do corpo medico local.
A molestia que recebeu na Europa o nome de influenza hespanhola e correu o velho continente fazendo uma larga colheita de vidas perdeu, ao passar para a America, o seu poder aggressivo. A não ser no Rio de Janeiro, onde, por circumstancias ainda mal esclarecidas, a molestia manifestou-se com certa gravidade, em todas as outras cidades do Brazil tem ella evoluido com benignidade. Pelos jornaes de Buenos Ayres e Montevidéo vemos que ali tambem a influenza evolue com insignificante mortalidade. E' por isso que dizemos que a epidemia que actualmente Cachoeira hospeda em nada differe da grippe vulgar.
Os principaes symptomas da molestia são: arrepios de frio, febre alta, dores geraes no corpo, e, sobretudo, na cabeça, dor na garganta, tosse, vermelhidão no rosto; ás vezes apparecem alguns escarros de sangue, delirio, vomitos, etc.
O doente deve ficar na cama, tomando um purgativo qualquer. Durante a molestia, o doente deve beber agua fresca, fervida, á vontade, ou aguas mineraes, Caxambú, Lambary, etc. O matte é uma excellente bebida, quente ou frio. Como alimento, caldos de cereaes ou de fructas.
A molestia dura geralmente de 4 a 6 dias. O quarto onde estiver o doente deve estar arejado. Sempre que seja possivel, o medico deve ser ouvido. A não ser em doentes enfraquecidos por molestias anteriores, a doença termina pela cura.
Ao serem aqui conhecidos os primeiros casos, o intendente municipal tomou varias providencias de ordem hygienica. A cidade foi dividida em 3 zonas para serem feitas visitas domiciliares, sendo nomeados fiscaes os srs. Amedeu Falkenbach, Francisco Lucas e Luiz Teixeira. É de esperar que a nossa população auxilie a municipalidade no sentido de manter os quintaes e pateos de suas habitações no mais rigoroso estado de limpeza.
Por ordem do governo do Estado foram fechados os collegios.
A municipalidade tem fornecido gratuitamente todos os medicamentos de que carecem os doentes pobres. O Hospital pôz á disposição da intendencia todos os leitos disponiveis para abrigar os enfermos indigentes.
A molestia, que aqui já está bastante disseminada, tem tido uma evolução muito benigna, não tendo havido nenhum caso fatal até á hora em que escrevemos estas linhas.

A história acabou por desmentir a notícia d'O Commercio, cuja próxima edição, do dia 13 de novembro de 1918, registrou uma das primeiras vítimas na cidade, Zoé Barreto Carlos, jovem esposa de Cyro da Cunha Carlos, futuro prefeito de Cachoeira:

Durante a semana finda, a influenza continuou na sua faina de invadir as casas da cidade, levando ao leito familias inteiras.
O corpo local tem prestado os seus serviços com uma actividade e solicitude dignas de registro e de louvor. 
De manhã á noite os automoveis com os medicos percorrem as ruas, do centro da cidade aos pontos mais afastados, ministrando os soccorros indispensaveis aos enfermos, cujo numero, agora, já seria bem difficil dar com exactidão pois que é de muitas centenas. 
(...)
(...) deram-se, na semana finda, dois obitos em consequencia da molestia: o da exma. sra. d. Zoé Barreto Carlos, esposa do sr. Cyro Carlos, residente á rua Moron; e o do sr. Francisco Alves, á rua 7 de Setembro. Essas duas victimas succumbiram em consequencia da grippe pulmonar.

As descrições do jornal se estendem para o panorama em Porto Alegre e Rio de Janeiro (capital federal à época). Em Porto Alegre, onde o número de vítimas só crescia, até os médicos se contaminaram nos atendimentos aos doentes, reduzindo ainda mais os socorristas; lá também a chefatura de polícia exercia censura à imprensa, como forma de garantir a tranquilidade pública. Quanto menos informado o povo, menos tumulto haveria!

Porto Alegre - setembro de 1918  - www.prati.com.br

Já na capital federal, apesar de haver declinado o número de atingidos, as casas de mantimentos se conservavam fechadas, faltando toda espécie de gêneros alimentícios à população. Quase todas as farmácias também cerraram as portas por terem sido acometidos do mal os farmacêuticos! Para minimizar a situação, o governo mandou vir 100 profissionais de São Paulo e, em poucos dias, 30 deles haviam caído enfermos.

Rio de Janeiro - 1918 - rioquemoranomar.blogspot.com

O panorama em dezembro de 1918 era de cerca de 3.000 atingidos pela epidemia em Cachoeira, com o saldo de 29 óbitos. A escassez de medicamentos era grande e o corpo médico desdobrava-se em atendimentos, tendo os clínicos Balthazar de Bem, Milan Kras, Silvio Scopel, Marajó de Barros e Augusto Priebe empregado todos os seus esforços para atender à massa de infectados.

Como foi possível constatar pelas notícias do O Commercio, o que começou a ser tratado como uma simples e corriqueira gripe, acabou por se transformar em notícia quase diária, dimensionada pelo temor e insegurança da tal espanhola...

MR

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