Pular para o conteúdo principal

Vigário ou vigarista?

Em tempos de flagelo, como acontece nas guerras e nas pandemias, é comum o gesto humanitário de socorro a vítimas de tais eventos. Mas como o homem é sempre o homem, independente dos tempos e das épocas, há os que são genuinamente solidários e há os que buscam tirar proveito pessoal das situações.

Terminada a I Grande Guerra, que ocorreu na Europa entre 1914 e 1918, maléficas foram as consequências. Milhares de famílias foram atingidas em sua integridade e bens, restando um número enorme de órfãos desassistidos. Movimentos de amparo foram deflagrados em todo o mundo, notadamente pela Cruz Vermelha, instituição criada em 1863 para garantir a proteção e a assistência a vítimas de conflitos armados e tensões.

Por outro lado, interessados em ganhar dinheiro em cima da desgraça alheia começaram a surgir, vindo notícia de Palmas, interior do município de Cachoeira, em janeiro de 1920, dando conta da presença de um sujeito que se fazendo passar por padre andava de casa em casa atrás de donativos em prol dos órfãos de guerra. Mas, afinal, era um vigário ou um vigarista, passaram as pessoas a se perguntar? Atento à situação, o jornal O Commercio, na edição do dia 14, primeira página, publicou a seguinte notícia:


O Commercio, 14/1/1920, p. 1


Vigario ou vigarista? - Anda percorrendo a campanha, afim de angariar donativos para os orphaos da guerra, um individuo com trajes ecclesiasticos. Desconfia-se muito tratar-se não de um vigario mas sim de um perfeito vigarista. Verdade que mostra um maço de papeis sellados, carimbados e muito sujos. Quando se lhe fazia alguma pergunta, elle tratava de se mandar rolar. Mostrou um livro cheio de assignaturas de doadores, alguns até com 100$000 rs. Em uma casa onde esteve e em que recebeu, provavelmente, uma boa maquia, benzeu-a com uma mão, emquanto com a outra apalpava o cobre recebido.

Por ter O Commercio ha pouco noticiado a existencia desses cavadores pelo municipio, é que o povo ficou com a pulga na orelha. É um typo alto, moreno, usa cabello cortado a meia cabelleira, mas não tem aquella rodinha pelada que os padres usam atraz, na cabeça.

A resposta não veio... Mas que o sujeito encheu as burras e deve ter ido cantar em outra freguesia é certo. E o pior, fazendo-se passar por um padre, figura que normalmente gozava da admiração e do respeito das comunidades. Portanto, o vigarista que se passou por vigário cometeu dupla heresia: fingir ser outra pessoa e se aproveitar da desgraça alheia em benefício próprio! Péssimo exemplo vindo do passado.

No ano seguinte, o mesmo jornal O Commercio noticiou que o vigário verdadeiro da paróquia de Cachoeira, padre Luiz Scortegagna, havia entregue no Bispado de Santa Maria a quantia de 135$000 réis, proveniente de uma collecta ordenada pelo S. Padre, o Papa Bento XI, em beneficio das crianças soffredoras da Europa, em consequencia da guerra.

O Commercio, 22/6/1921, p. 3

O bom e honesto vigário Luiz Scortegagna
- Acervo Ricardo Abreu

MR

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Casa da Aldeia: uma lenda urbana

Uma expressão que se tornou comum em nossos dias é a da "lenda urbana", ou seja, algo que costuma ser afirmado pelas pessoas como se verdade fosse, no entanto, paira sobre esta verdade um quê de interrogação!  Pois a afirmação inverídica de que a Casa da Aldeia é a mais antiga da cidade é, pode-se dizer, uma "lenda urbana". Longe de ser a construção mais antiga da cidade, posto ocupado pela Catedral Nossa Senhora da Conceição (1799), a Casa da Aldeia, que foi erguida pelo português Manoel Francisco Cardozo, marido da índia guarani Joaquina Maria de São José, é mais recente do que se supunha. Até pouco tempo, a época tida como da construção da casa era dada a partir do requerimento, datado de 18 de abril de 1849, em que Manoel Francisco Cardozo: querendo elle Suppl. Edeficar umas Cazas no lugar da Aldeia ecomo Alli seaxe huns terrenos devolutos na Rua de S. Carlos que faz frente ao Norte efundos ao Sul fazendo canto ao este com a rua principal cujo n...

Instituto Estadual de Educação João Neves da Fontoura - 90 anos

O mês de maio de 2019 está marcado por um momento significativo na história da educação de Cachoeira do Sul. No dia 22, o Instituto Estadual de Educação João Neves da Fontoura chegou aos seus 90 anos carregando, neste transcurso de tempo, desafios, dificuldades e conquistas. Muitas crianças e jovens passaram por seus bancos escolares, assim como professores e servidores dedicados à desafiadora tarefa educativa. A história do João Neves, como popularmente é chamado aquele importante educandário, tem vínculos enormes com seu patrono. Em 1929, quando a instituição foi criada com o nome de Escola Complementar, o Dr. João Neves da Fontoura era vice-presidente do estado e há pouco havia concluído uma gestão de grandes obras como intendente de Cachoeira.  Em 1927, ano em que Borges de Medeiros resolveu criar escolas complementares no estado para a formação de alunos-mestres, imediatamente João Neves empenhou-se para que uma destas escolas fosse instalada em Cachoeira, município p...

Série Documentos da Imigração Italiana em Cachoeira: o médico italiano Silvio Scopel

Um dos médicos que mais marcou a história da medicina em Cachoeira do Sul, certamente, foi o italiano Dr. Silvio Scopel que aqui reconstruiu sua vida e viveu por 38 anos. Silvio  Giovanni Giacomo Scopel nasceu em 7 de fevereiro de 1879, na província de Belluno, filho de Giovanni Scopel e Teresa Cricco Scopel. Formou-se médico em 1901, pela Universidade de Pádua, atuando como médico cirurgião e parteiro em diferentes cidades italianas. Em 1906, casou com Margherita Dal Mas, não tendo descendência desta união. O casamento não durou muito, pois Margherita faleceu, causando profunda tristeza no jovem médico. Tal estado de ânimo o fez optar por, na companhia de um colega e amigo, também médico, Dr. Alvise Dal Vesco (também aparece Dalvesco), vir para o Brasil. Sua chegada em Cachoeira se deu no ano de 1912, oferecendo os dois médicos os seus serviços, inicialmente prestados nas farmácias Popular e Nova, na Rua 7 de Setembro. Dr. Silvio Giovanni Giacomo Scopel - MMEL Propaganda do D...