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A indescritível seca e o apelo dos miseráveis agricultores

Corria o ano de 1877. A velha Cachoeira, assim como toda a Província do Rio Grande do Sul, vivia uma enorme seca. A situação de estio e as decorrências de seu prolongamento são de nosso amplo conhecimento, pois o recente 2022 repetiu tão nefasto fenômeno, cujas consequências se fazem sentir ainda fortemente em 2023. 

A informação chegou até nós graças ao livro Copiador elaborado pelo historiador Aurélio Porto, quando desempenhou as funções de Secretário de Arquivo e Estatística do Município na primeira década do século XX. Nesse livro ele organizou um índice explicativo dos documentos produzidos pelas administrações municipais desde a instalação da Vila Nova de São João da Cachoeira, no memorável 5 de agosto de 1820.

Assim ele registrou o assunto: 

7.º - Actas - 1877 - (...) Neste anno ha enorme secca, como nunca fôra visto que occasionara indiscriptiveis prejuisos á lavoura e á criação do Municipio. Em 23 de Maio é nomeada uma commissão para computar os prejuisos causados pela secca, em todos os districtos. Essa commissão participa á Camara que por sua vez officia ao Governo em 25 de Junho, que pela relação dos districtos, com excepção de parte do 3.º, ha 1253 agricultores em extrema miseria devido ao flagello da secca, que devem ser auxiliados pelo Governo com a quantia de 20.000 rs. cada um. (IM/EA/SA/RL-001, fls. 8 e 8v).

Uma busca na documentação produzida na época permitiu encontrar documentos interessantes que reconstituem uma parte desse grave momento histórico, já que os livros de atas do período, e que foram alcançados pelos registros do historiador Aurélio Porto, não chegaram até nossos dias.

O primeiro deles é um ofício de 8 de fevereiro de 1877, remetido de Porto Alegre ao presidente e mais vereadores da Câmara de Cachoeira pela comissão nomeada pela presidência da Província para averiguação das condições em que o município se encontrava, em razão da calamitosa seca. Nele os membros perguntam:

1.º Quaes os males que ja tem causado a secca n'esse municipio, quer em relação á agricultura, quer á industria pastoril.

2.º Se a secca ja tem produsido ou pode vir a produsir mais tarde fome nas classes menos abastadas.

3.º Em caso affirmativo quaes as providencias preventivas que julgão mais acertado tomar-se.

(CM/S/SE/CR-010)

A situação era muito grave e a Câmara passou a receber solicitações de ajuda aos flagelados. Um requerimento datado de 12 de fevereiro de 1877 e subscrito por 68 chefes de família residentes no Cortado (Picada Nova), então 7.º quarteirão do 1.º distrito do município de Cachoeira, com texto contundente, expõe a grave situação vivida por aqueles cidadãos e suas famílias:

(...) A funesta secca que á meses devasta a nossa Provincia, tem sido mais sensivel n'este reducto que habitamos, a ponto de invalidar os mais extraordinarios esforços que humanamente é possivel fazer para obtermos da lavoura, o mais tenue recurso para exiguamente alimentarmos nossas familias. 

O fogo intenso que lentamente á tres mezes nos devasta, campo e mattos, em sua marcha destruidora; tem consumido máu grado nossos esforços, não so capoeiral, como simultaneamente paióis, casas de moradia, cercados e plantações.

A crise terrivel por que atravessa o commercio, com seu cortejo de horrores, tem sido, é e continua a ser, o mais atroz flagello inutilisador dos extraordinarios esforços que os abaixo assignados tem feito para evitar que a fome, a miseria e a nudez, invada em tão crescido numero de almas.

A vista pois do exposto, os abaixo assignados vendo-se prestes a soffrer a fome com seu cortejo de  horrores males estes que acarretão comsigo o crime... vem impectrar dos Poderes competentes os recursos necessarios para tão calamitosa quadra até que a Divina Providencia se compadeça de tantos infelises.

Cortado na Picada Nova 7.º quarteirão do 1.º Districto da Cachoeira, 12 de Fevereiro de 1877.

Seguem as 68 assinaturas, algumas a rogo, ou seja, que por impedimento se faz representar pela escrita de seu nome por outra pessoa.


CM/OF/Requerimentos - Caixa 13 - 12/2/1877

Em 16 de fevereiro de 1877, no encadernado das correspondências expedidas pela Câmara (CM/S/SE/RE-010, fls. 63 e 63v), ficou registrado o ofício remetido ao Vice-Presidente da Província, João Dias de Castro, informando-o que: 

Tendo sido presente a Camara Municipal em sessão de hoje a representação dos moradores da picada nova no Cortado (...) reclamando providencias por se acharem ameaçados de fome, visto que perderão todas as suas plantações com a secca que assola a Provincia, e sendo justa tal reclamação pelas noticias que d'ali diariamente chega a esta Cidade, e não tendo a Municipalidade meios para acudir a esses necessitados, resolveu enviar por copia a dita representação a V.Ex.ª p.ª que se digne providenciar no sentido de que não soffrão os horrores da fome aquelles reclamantes e m.tos outros em identica condição que existem n'este Municipio. 

Em 19 de fevereiro de 1877, uma circular do Vice-Presidente João Dias de Castro, refletindo a solicitação feita não só pela Câmara de Cachoeira, mas também por várias outras, no sentido de attenuar-se os males da secca, orientando-as a promoverem subscripções entre seus municipes, cujo producto reverta em favor dos indigentes que esse flagello fôr ahi occasionando. O Vice-Presidente justifica tal orientação porque não podendo a Provincia em consequencia do seu estado financeiro acarretar com mais essa despesa, é licito esperar de Vmcês todo o auxilio e dedicação em semelhante contingencia em prol de seus concidadãos que soffrem, attribulados pela fome. (CM/DA/Ofícios - Caixa 7).

Sobre as subscrições, a Câmara respondeu não se achar com coragem de nomear comissão para liderá-las em razão da grave situação dos munícipes (CM/S/SE/RE-010, fls. 64 e 64v, 2/3/1877).

Outro ofício do mesmo Vice-Presidente, datado de 2 de março de 1877, informou a Câmara de Cachoeira que não podendo os cofres publicos carregar com maiores dispendios, em face do estado financeiro da Provincia, aggravado em suas rendas, não pode esta Presidencia attender a representação dos moradores da picada nova do Cortado, 1.º districto d'esse Municipio, a qual por copia enviarão-me Vmcês em officio de 16 de Fevereiro ultimo. Para acudir aos necessitados que o flagello da secca fôr produzindo entre nós, já solicitei do Exmo. Sr. Ministro do Imperio um credito sufficiente para esse fim e logo que elle me seja concedido, não duvidarei em satisfazer a reclamação que me fazem. E segue orientando os vereadores que levem em consideração a sua circular de 19 de fevereiro, não deixando de buscar recursos por subscrição entre seus munícipes. (CM/DA/Ofícios - Caixa 7).

A situação não se resolvia, antes pelo contrário, seguiam as petições de ajuda. Em 20 de março de 1877, os moradores do 2.º distrito dirigiram-se ao subdelegado Pedro Pereira Fortes que, por sua vez, encaminhou à Câmara uma petição assinada por mais de centena de agricultores desesperados por não terem mais nenhum meio de alimentarem-se a si e as suas familias, nem podendo esperar resultado de plantaçoens com as chuvas que possão vir por se ter passado o tempo proprio de semear, vem respeitosamente rogar a VV.S.S. se dignem servir do seo orgão junto ao Governo Provincial, pedindo providencias para a afflictiva situação em que se achão. 




CM/S/SE/CR - Caixa 19 - 20/3/1877

Em 4 de maio de 1877, a Câmara recebeu outra circular de João Dias de Castro informando que o Ministro do Império concedeu um crédito de 200 contos de réis para socorro dos flagelados da seca e que para ter completa execução a philantropica deliberação do Governo Imperial, torna-se indispensavel que Vmcês. calculem approximadamente o computo das despezas que n'esse termo se tem de fazer com os indigentes occasionados pela secca, cuja relação deverão remetter em breve tempo, tendo em vista para o desempenho de tal missão a maior economia possivel na distribuição dos auxilios que se tenhão de prestar, a mais sevéra fiscalisação e escrupulo na escolha das pessôas que se tenhão de encarregar d'essa tarefa (CM/DA/Ofícios - Caixa 7).

Em resposta a posterior pedido do Vice-Presidente, a Câmara de Cachoeira nomeou os cidadãos Camillo José de Lara e João Gerdeão* para informarem minuciosamente quaes aquelles que se achão n'estas condições, e que numero de pessoas compoem a familia de cada desses necessitados, conforme ficou registrado no encadernado CM/S/SE/RE-010, fls. 67v e 68, em que foi transcrita cópia da correspondência remetida aos dois nomeados em 23 de maio de 1877.

A partir de então, determinando a Câmara o levantamento das pessoas necessitadas de auxílio, começaram a ser enviados ofícios com as relações, tendo sido preservados os primeiros e perdidas as listas dos moradores em situação de miséria ocasionada pela seca. Os signatários dos ofícios eram os responsáveis pelas informações, constando ser:

- ofício de 28 de maio de 1877, oriundo da Picada Nova e assinado por Lidio Carvalho de Aragão e Zeferino dos Santos e Silva (CM/S/SE/CR - Caixa 19),

- ofício de 31 de maio de 1877, oriundo do 1.º distrito da Cidade da Cachoeira e assinado por Manoel Francisco de Farias (CM/S/SE/CR - Caixa 19),

- ofício de 1.º de junho de 1877, em que os cidadãos Sebastião Luis de Chaves e Caetano Francisco Cavalheiro, da Costa de Santa Bárbara, comprometem-se a dar aos vereadores emtero conhecim.to do numero de pessoas asimma ditas, louvando acto tão umanitario e philantropico dessa tão digna corporação (CM/S/SE/CR - Caixa 19).

Chama atenção o ofício datado também de 1.º de junho de 1877, assinado por Jozé Manoel de Leão, em que constam os nomes das pessoas que, segundo sua consciência, mais necessitavam ser atendidas:

Illmo. Snr.º

João Thomaz de Menezes

Em resposta o hoficio de V.S.ª  de 23 de Maio d corrente anno em que pédeme para informar as pessoas que sofrerão com a secca e que se achão absolutamente privadas de todo os recursos, na minha conciencia são as seguintes. Rita viuva de Clarimundo Ant.º das Chagas com seis filhas e trez filhos, Viuva Silvana com uma filha e uma nétta, Ritta, viuva de Felisberto, Salvado; hum cazal de negros velhos forros por nome João e Rofina; Belizario Durão, com oito filhas e sinco filhos de menor idade; Huma preta velha forra por nome Delfina.

Deos guarde a V.S.ª

Santa Barbara 1.º de Junho de 1877

Jozé Manoel de Leão


CM/S/SE/CR - Caixa 19 - 1/6/1877

No ofício remetido por João Xavier Diniz, do 3.º distrito de Cachoeira, Jacuí, em  25 de junho de 1877, foi preservada a lista dos cidadãos nissitados do Passo de Jacuhÿ ate o alto da estiva e da lÿ ate a picada da ristinga, que eram os seguintes:

Lista

Joze Ferrera dos Passo e sua mlher com 3 Filho menores

Francisca Maria dAlmeida Viuva com 1 Fª e hum neto

Thimotio Luis OZorio su Mlher e Fª 4 Filhos menor

Claudina de Vargas Viuva 4 Fª menor 2 Filho menor

Thomas Narsizo Floriann sego su compª 2 Pequenos

Joze Antonio dOliveira suo molher 2 Pequenos

Alipio Joze de Freitas su molhe 6 menor

(CM/S/SE-CR - Caixa 19)

Em 25 de junho de 1877 foi remetido ao Presidente da Província, Desembargador Francisco de Faria Lemos, a relação das pessoas necessitadas, e que soffrerão em extremo com a secca que assolou esta Provincia: a mencionada relação comprehende o numero de 1.253 pessoas (CM/S/SE/RE-010, fl. 71v).

Nesse vai e vem de correspondências e pedidos de socorro, o tempo foi passando e levando com ele as esperanças e as forças dos agricultores. A chuva veio, debelou a seca, mas certamente os infelizes cidadãos que viveram o seu drama devem ter amargado todo tipo de dificuldade, alguns nem chegaram a ver renascer as esperanças. 

2023. Apesar dos exemplos cruéis do passado, parece que as gerações que vieram depois e a nossa não despertaram para a prevenção e a preservação dos recursos naturais, aqueles que salvarão nossas vidas quando as intempéries se apresentarem. E elas se apresentarão, não há dúvidas disso.

MR

*será João Gerdau?

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