Um grande problema surgiu para autoridades, criadores e, principalmente, para a população cachoeirense no ano de 1947, quando a escassez da carne, alimento imprescindível para a dieta dos gaúchos, começou a se pronunciar nos açougues e o pouco que havia ser vendido a preços estratosféricos.
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Imagem: pt.vectezzy.com |
A reação da população foi imediata e o problema foi atirado aos ombros do então Prefeito Municipal Mário Godoy Ilha. Naquele tempo, a regulação dos preços dos produtos, especialmente da carne verde, que nada mais é do que a carne fresca, passava pela Comissão Municipal de Preços - C. M. P. Como nas discussões de que medidas tomar o resultado dos técnicos da C. M. P. deu empate, cabia ao Prefeito Mário Ilha o "voto de Minerva", ou seja, o do desempate.
Várias tentativas foram feitas para demover a Associação de Criadores e Invernadores Ltda., fundada em 1913 como União dos Criadores, de majorar os preços, com solicitações de que os pecuaristas seguissem abatendo. O imbróglio foi amplamente divulgado na imprensa da época, especialmente depois que o Prefeito Mário Godoy Ilha publicou o seguinte decreto:
Decreto
Isenta de impostos o gado abatido fora do perimetro urbano
e destinado ao consumo da população.
Mario Godoy Ilha, Prefeito Municipal de Cachoeira do Sul, usando das atribuições que lhe são conferidas pela Lei; e
Considerando a alta do preço do gado e a sua escassês em condições de ser abatido;
Considerando que é dever do poder público cooperar no sentido de que não venha a sofrer majoração o preço da carne vendida à população;
Considerando que a Sociedade de Criadores e Invernadores Ltda, que explora, atualmente, o comércio da carne verde, se declara impossibilitada de manter os preços atuais, durante o periodo de agosto a outubro, em face dos prejuizos que ameaçam a sua propria existência patrimonial;
Considerando que a dita Sociedade não gozando de favores nem mantendo contrato com a Prefeitura a Administração não pode exigir que continúe mantendo os preços atuais da carne, obrigando-a a sofrer os prejuizos alegados;
Considerando, finalmente, que é dever precípuo da Administração, quando em jogo interesses coletivos, encontrar uma fórmula que os concilie, reciprocamente, resolve
Decretar:
Art. Único: - Tira isento de quaisquer impostos municipais, até novembro do corrente âno, todo o gado abatido fora do perímetro urbano da cidade e destinado ao consumo da população local desde que sejam mantidos os preços atuais de Cr$ 5,70, 4 20 e 3,00, para o quilo de carne sem osso, primeira com osso e segunda, respectivamente.
Prefeitura Municipal de Cachoeira do Sul, 23 de agosto de 1947.
(as) Mario Godoy Ilha
Prefeito.
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Livro de Decretos n.º 3 - Prefeitura Municipal (fundo não indexado) |
Sobre o assunto tratado no Decreto de 23 de agosto de 1947, o Jornal do Povo, do dia imediato, na primeira página, com continuação na última, assim repercutiu:
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Jornal do Povo, 24/8/1947, p. 1 |
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Jornal do Povo, 24/8/1947, última página |
Decretada A Matança Livre
Em decreto de ontem, o sr. Prefeito Municipal isentou de impostos todo o gado abatido, fora do perimetro urbano, para o consumo da população local, isenção que será dada uma vez que se mantenham os preços atuais da carne consumida nesta cidade.
O periodo de isenção começará da data do decreto e terminará em novembro do ano corrente.
TRÊS VOTOS CONTRA TRÊS
EMPATADA A VOTAÇÃO NA C. M. P. CABERÁ AO PREFEITO, EM "VOTO DE MINERVA", DAR SOLUÇÃO FINAL AO PEDIDO DA SOCIEDADE DE CRIADORES SÔBRE O AUMENTO DO PREÇO DA CARNE
Reuniu-se ontem, às 15 horas, no salão nobre da Prefeitura, a Comissão Municipal de Preços, a fim de estudar e dar solução final ao pedido de aumento do preço da carne, feito pela Sociedade de Criadores e Invernadores Ltda.
Esgotado ontem o prazo concedido pela Sociedade, não aparecendo nenhum interessado no fornecimento de carne durannte êstes próximos três meses, devia a C. M. P., forçosamente, se pronunciar.
Compareceram à reunião os seguintes membros: Mário Godoy Ilha, Frederico Gressler, Paulo Pinto de Carvalho, Carlos Nogueira da Gama, Edyr Lima, Pedro Ayube, Geny Trindade e Fernando Trindade do Nascimento.
A VOTAÇÃO
Depois das discussões preliminares, teve lugar a votação, que foi a descoberto, por proposta de um dos membros da Comissão.
Votaram pelo aumento do preço da carne, nos têrmos da proposta da C. M. P. à Sociedade, os srs. Frederico Gressler, Carlos Nogueira da Gama e Pedro Ayube.
Contra o aumento votaram os srs. dr. Paulo Pinto de Carvalho, Fernando T. do Nascimento e dr. Edyr Lima.
UMA ABSTENÇÃO
O Sr. Geny Trindade, absteve-se de votar, alegando sua condição de membro associado da Sociedade de Criadores e Invernadores Ltda.
Com esta abstenção ficou empate a votação, sendo necessário, portanto, o
"VOTO DE MINERVA"
que deveria ser dado naquela ocasião pelo Prefeito Mário G. Ilha. Compreendendo a gravidade e a responsabilidade de sua decisão, S. Sria. decidiu convocar nova reunião para 2.ª feira próxima, quando então emitirá seu voto, devidamente fundamentado.
Ao emitirem seu voto, quase todos os membros da C. M. P. fundamentavam-no.
JUSTIFICAÇÃO DE VOTO DO SR. CARLOS GAMA
"Como tem sido ressaltado nas discussões desta Comissão, o problema por cuja solução nos vimos debatendo é dos mais graves, no momento, para a cidade.
Pedem os dirigentes da Sociedade de Criadores e Invernadores Ltda., um aumento de preço, sob pena de suspenderem o fornecimento de carne verde à população.
Conforme já expus verbalmente aqui, e em entrevista concedida à imprensa, essas dificuldades que, na época são gerais do Estado, poderiam ter sido evitadas neste município se a Sociedade peticionária se houvesse prevenido em tempo hábil, adquirindo gados para abater agora, como teve oportunidade de fazê-lo.
Não o fez, porém, a nós ruralistas que eu represento aqui, não cabe a mínima culpa, pelas contingencias naturais do seu negocio, não encontrando colocação no mercado local, foram êles naturalmente em busca de outros mercados para vender o produto de sua safra, ficando assim o município praticamente sem gado algum em condições de abater.
Não cabe, porem, discutir aquí êsse assunto. O passado ao passado pertence. O fato a considerar no momento é o seguinte: Conhecedor que sou do assunto, sei que a Sociedade de Criadores e Invernadores Ltda, vendendo a carne pelos preços atuais, está, realmente, como afirma, sofrendo elevados prejuizos.
Desnecessàrio será eu dizer que o aumento do preço da carne tanto é antipático a vós outros como a mim próprio.
Por isso, uma das soluções do problema que se me apresenta, seria a própria prefeitura encarregar se do fornecimento de carne à população, arcando com os prejuizos daí decorrentes. Esta hipótese, porém, está de antemão afastada, porquanto o sr. Prefeito Municipal declarou já em praça pública que a municipalidade não está em condições de assumir tal compromisso.
Por outro lado, a matança livre, anunciada de público pelo sr. Prefeito Municipal, é impraticável porque o Departamento de Higiene do Estado, como tem feito até agora, não permitirá, por certo, essa medida. Admitindo, no entanto, que o permita, mesmo assim não solucionará, ainda, o problema, porquanto é certo e real que não há gado gordo, e um cidadão particular qualquer que quisesse tomar a si êsse encargo, viria esbarrar fatalmente nas mesmas dificuldades com que lutam atualmente os marchantes locais.
Restam-nos, assim, tão somente duas alternativas: Conceder o aumento pleiteado ou ficarmos sem carne.
Deste modo considerando, sou de parecer que, até novembro próximo, época em que melhoram de pêso os gados e em que poderá fazer um novo reajustamento de preço, conceda-se o aumento pleiteado, nas condições já estabelecidas, isto é, somente para a carne de 1.ª qualidade, que deverá ter seu açougue exclusivo, ficando as classes menos favorecidas com a possibilidade de adquirir, também, em açougue próprio, carne de segunda a Cr$ 3,00 o quilo, que é o preço atual, preço êste, aliás, mais baixo do que o de todos os municipios do Rio Grande.
Carlos L. N. Gama
Na edição seguinte do Jornal do Povo, 25/8/1947, p. 1:
O PROBLEMA DA CARNE
Reune-se Hoje a Comissão Municipal de Preços
Conforme noticiamos ontem, reunir-se-á hoje a C. M. P. a fim de ouvir o "voto de Minerva" do Prefeito Mário Godoy Ilha.
Segundo consta, também estão na pauta dos trabalhos de hoje, diversos outros assuntos, além do problema da carne.
Em nossa próximo edição publicaremos com detalhes o desenvolvimento dos trabalhos de hoje.
Na próxima edição do jornal, publicada no dia 27 de agosto, segue a discussão do problema da carne, apontado como tendo atingido naqueles dias o "seu clímax".
O Prefeito Mário Ilha já tinha externado publicamente, em comício, que votaria contra o aumento. Mas como a Sociedade de Criadores e Invernadores tinha ameaçado suspender o fornecimento de carne caso o aumento fosse negado, Mário Ilha tentaria novo entendimento com os criadores e membros daquela sociedade fazendo-lhes o apelo de que abatessem pelo menos três vezes por semana para garantir o abastecimento da cidade. Com esta alternativa, os prejuízos seriam menores para os fornecedores. Mas até aquele momento, era desconhecida a marcha das negociações.
A Associação Comercial de Cachoeira, na intenção de contribuir com as discussões, enviou ofício à Sociedade de Criadores e Invernadores fazendo apelo para solução do problema:
CONSIDERANDO ter a nossa laboriosa população , na manhã de hoje, ficado privada deste precioso e básico alimento, tão necessário ao sustento e saúde de todos; Considerando a situação presente ter chegado a um ponto de extrema gravidade e tender a se agravar mais; Considerando não poder a nossa laboriosa gente continuar sofrendo os rigores de tal privação; Considerando que os direitos, interesses, aspirações em fóco são respeitaveis e passíveis de uma solução comum e satisfatória, muito embóra não possa a nossa população ficar sem carne enquanto o impasse seja solucionado; Considerando, enfim, um estado de coisas que a Associação não deve ficar indiferente, como entidade que é e sempre tem sido solicita aos interesses, á defesa e às aspirações dos seus membros, partes integrantes de nossa coletividade.
SOLICITA E APELA VEEMENTEMENTE à sua coirmã de Criadores e Invernadores que nestas circunstancias e numa compreensão superior das necessidades da nossa gente CONTINUE, por mais oito dias, SERVINDO DE CARNE VERDE a nossa população, até que como todos desejamos e esperamos, o caso em estudo chegue a uma feliz e geral solução.
Pela acolhida de nosso apelo e da nossa sugestão ficamos certos e gratos.
Edwino Schneider
Vice-presidente em exercicio
Carlos Moeller Sobrinho
Secretário
Os mesmos signatários do ofício da Associação Comercial dirigiram correspondência ao Dr. Fabrício Pillar Soares, presidente do Conselho Técnico Consultivo do Município, com cópia do memorial enviado à Sociedade de Criadores e Invernadores Ltda., apelando que fosse estudado "o importante assunto da carne verde", solicitando "valioso e patriótico apôio, nesse assunto, que está preocupando assustadoramente a coletividade cachoeirense". Com o mesmo conteúdo, também foi oficiado, pela Associação Comercial, o Prefeito Mário Godoy Ilha.
Ainda nessa matéria, o jornal diz que sabia de fonte segura que a Sociedade havia abatido gado naquele dia. "Assim, a população que faz abstinência de carne já há três dias, amanhã terá o precioso alimento" e que os abates aconteceriam "enquanto os poderes competentes estudam nova proposta que a mesma teria apresentado. Se a Sociedade transigir, apresentando proposta mais razoável para êstes meses de gado magro, seremos os primeiros a aplaudir seu gesto."
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O Comércio, 10/9/1947, p. 1 |
O Comércio publicou, em 10 de setembro, que o presidente da Comissão Municipal de Preços, o Prefeito Mário Godoy Ilha, deu o voto de desempate e disse: "Votando pelo aumento, defendo a população da falta de carne e da exploração que sofre com a alta dos produtos adquiridos para substitui-la".
E, finalmente, no mesmo jornal O Comércio, edição de 24 de setembro de 1947, a notícia de que "A Carne Deverá Baixar 30 Centavos por Quilo", pela promulgação da Lei N.º 4 de 16 de setembro de 1947, em que o Governador Walter Jobim concedeu "isenção do imposto de vendas e consignações mercantis às transações do gado e carne verde destinadas ao consumo, no Estado". Pela medida, o governo do Estado abria mão de impostos em benefício do consumidor, "considerando a época anormal atual, principalmente com relação a escassês de gado, que faz com que a carne verde venha custar ao consumidor preços exorbitantes".
Notícias do passado, situações de conflito de interesses que se repetem.
MR
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