A coleção do jornal O Commercio, do acervo de imprensa do Arquivo Histórico, mais uma vez nos brinda com uma notícia que vem à luz justamente quando no Brasil é comemorado o Dia do Índio, em 19 de abril. Trata-se de um relato da situação dos indígenas do Rio Grande do Sul, sendo que o autor, que assina apenas com as iniciais B. S., toma por exemplo aldeamentos da região do Alto Uruguai em 1901!
Guardadas as diferenças temporais e de tratamento social da questão, o que a matéria abaixo transcrita demonstra é que, mesmo transcorridos 114 anos, quase nada do panorama relatado em 1901 foi modificado.
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Guarani-mbyá - Imagem: pib.socioambiental.org |
Indigenas do Rio Grande
O interesse que de tempos tenho tomado por tudo quanto se prende á historia e cousas do Estado levou-me, em abril ultimo, ao aldeamento dos indigenas do alto Uruguay e agora, aproveitando as férias do Natal, de novo ali estive, afim de completar as notas que estão servindo para uma noticia que a respeito pretendo publicar em folheto.
O estado deploravel em que se encontra ali para mais de 1.000 creaturas desafia a compaixão, exige uma medida humanitaria, urgente.
No municipio da Lagôa Vermelha, duas leguas, mais ou menos, distantes uns dos outros encontram-se em toldos, Pontão, Forquilha e Ligeiro ou Bueno, todos governados pelo cacique general Faustino, com uma população de pouco mais de 400 almas.
Os indigenas são sadios, sendo a mortalidade em proporção muito favoravel.
Vivem no matto, em ranchos demasiadamente rusticos.
Andam semi-nús, plantam muito pouco, e raros animaes domesticos vêm-se entre elles.
Nenhum sabe ler e muito poucos falam o portuguez.
São habeis para qualquer trabalho manual e preparam chapéus de palha, balaios, peneiras, etc., mas quasi nada vendem, porque não procuram mercado, mantendo-se segregados da sociedade.
Tradicionalmente conservam imperfeita idéia de Deus, sem nunca terem sido instruidos religiosamente, si bem que no baptismo das creanças empreguem formulas semelhantes ás da religião evangelica.
Considerando o gráo de civilisação quasi nullo desses semi-selvagens, a pobreza e a indigencia, muitas vezes extrema, em que definham e apreciando suas boas qualidades e disposições, comprehende-se a necessidade absoluta de soccorrel-os, de instruil-os, de ensinar-lhes o trabalho productivo.
Uma alma altamente humanitaria, a exma. sra. d. Adele Pleithner, professora do Collegio Evangelico, do Novo Hamburgo, conscia do grande alcance social e do gloriosissimo valor moral da obra civilisadora dos indigenas, resolveu, affrontando todas as difficuldades e sacrificando suas forças e seus interesses particulares, dar principio á instrucção e educação dos infelizes bugres.
O exmo. sr. presidente do Estado aprovou esta generosa empreza, promettendo sua poderosa protecção.
Dous dos aldeamentos da Palmeira foram agora por mim visitados; o de Nonohay que compõe-se de dois toldos, o de Nonohay propriamente dito, sob o commando do capitão Antonio Pedro, e o da Serrinha, distante 6 legoas daquelle, sob o commando do major Manoel.
Além desses ha no mesmo municipio o do Boutoro nas margens do rio Uruguai-Mirim e um outro nas margens do rio da Varzea.
Nestes toldos vivem mais de 600 indigenas, um tanto mais adiantados que os da Lagôa Vermelha, são muito pacificos, trabalhadores e de sentimentos affectivos, mostrando-se gratos aos seus bemfeitores e doceis aos que procuram ensinal-os.
Os crimes de homicidio, ferimentos, furtos, são entre elles rarissimos. Muitos criam porcos e gallinhas; sabem fazer peneiras e balaios lindissimos, chapéos de tecido de crissiúma e taquara, businas de chife, tudo pintado de varias côres que preparam com o succo de vegetaes.
Sabem preparar herva-matte e fumo de primeira qualidade.
Sobre religião têm uma idéa menos vaga do que os de Lagôa Vermelha; seguem inconscientemente alguns principios ethicos; ignoram porém, o evangelho, com quanto, como aqueles, façam no baptismo, alguma cousa semelhante ás praticas de egreja evangelica.
Felizmente já possúo todos os apontamentos historicos, linguisticos, ethnologicos e estatisticos, necessarios ao trabalho a que me proponho, qual seja o de patentear aos rio-grandenses o estado dessa parte da humanidade e, consequentemente, o dever imperioso que todos nós temos de concorrer para a sua civilisação.
No abençoado sólo do Rio Grande não devem continuar a vegetar esses restos da infeliz raça indigena, esses brazileiros expoliados por força da evolução dos povos: urge que venham viver ao nosso lado, com as mesmas vantagens que a civilisação nos faculta.
Em Missões e em outros sertões do Estado existem espalhados muitos decendentes de indigenas meio civilisados, mas grande parte contaminados pelo virus da immoralidade e do alcoolismo, males que lhes trouxeram os conquistadores, de nada tendo lhes valido a grande republica jesuitica que desappareceu como um sonho com as suas reducções, sem nenhum proveito deixar para os infelizes que escravisára.
Precisamos seguir trilha opposta á dos antigos conquistadores, libertando e não escravisando.
Obra patriotica, missão sublime será essa de elevar os nossos indigenas á dignidade de povo civilisado; e, para consecução de tal fim, muito póde fazer o patriotico governo de Estado, estabelecendo ali colonias, cujos lotes sejam de preferencia cedidos a elles.
Professores, mestres de officios dotados de paciencia e dedicados, são uma necessidade para o bem estar desses infelizes, muitos dos quaes me supplicaram tal beneficio.
Se nos aldeamentos houvesse uma pessoa que se prestasse a tomar a si uma tal tarefa eu appellaria para os nunca desmentidos sentimentos de caridade dos porto-alegrenses e lhes pederia uma esmola para os bugres, de roupas usadas com que viessem a cobrir as carnes.
Em todo o caso, grande familia rio-grandense, ahi tendes campo vasto para exercitardes os vossos sentimentos altruisticos.
E vós benemeritas sociais da Grande Associação Beneficente de Senhoras, lançae um piedoso olhar para aquellas bandas, estendei [rasgado] até lá os beneficios que por todas as outras partes do Estado ides derramando.
Salvae os restos deste povo por excellencia BRAZILEIRO.
Abraçae, soccorrei essa raça orfan e semi-selvagen e a benção de Deus vos acompanhará.
(Jornal do Estado) B. S.
(Publicado no jornal "O Commercio", ano II, n.º 56, 23/1/1901)
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