O Brasil está às portas de importante eleição. Momentos como este, fundamentais para o exercício da democracia e para definição dos rumos da política, nunca foram amenos. Em todas as instâncias governamentais as disputas acirradas muitas vezes ganharam contornos violentos e dramáticos. Alguns contendores, embora este não devesse ser o termo empregado, melhor seria dizer disputantes de cargos públicos, fazem uso de subterfúgios e artimanhas para garantirem a vitória nos pleitos, tanto nos dias que correm como nos que já fazem parte do passado.
Cachoeira, no começo do século XX, quando a política local era fortemente dominada pelo Partido Republicano Rio-Grandense - PRR e, logicamente, com a devida oposição, também foi palco de situações pouco democráticas. A imprensa da época tinha órgãos representativos de partidos e bandeiras políticas e as páginas dos seus respectivos jornais estampavam francas e diretas acusações. As lideranças faziam uso da imprensa para o ataque e a defesa de suas ideias e de seus candidatos.
Em 1904 se renhia mais uma disputa eleitoral na cidade da Cachoeira, mas dessa feita envolvendo uma dissidência dentro do majoritário Partido Republicano Rio-Grandense. O jornal O Commercio trazia artigos e manifestações favoráveis aos dois candidatos que se apresentavam: Dr. Nelson Coelho Leal e Coronel David Soares de Barcellos. O detalhe interessante é que o candidato de preferência do todo-poderoso da política local, o Coronel Isidoro Neves da Fontoura, era o engenheiro Nelson Coelho Leal.
O operariado de Cachoeira, a quem David Soares de Barcellos prestava apoio, lançou nas páginas do jornal um manifesto Ao operariado do municipio que finalizava assim:
Um voto dos companheiros da briosa, unida e progressista classe operaria para o devotado e popular filho desta terra, coronel David S. de Barcellos, é simplesmente o testemunho da nossa gratidão. Liberdade, Concordia e União - é a nossa sacrosanta bandeira. A's urnas, pois. Cachoeira, 19 de Junho de 1904.
(Assinam) Diversos operarios.
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O Comércio, 22/6/1904, p. 2 |
Na mesma edição d'O Commercio, Isidoro Neves da Fontoura, em sessão intitulada Tribuna do Povo, escreveu aos Illustres Co-Religionarios:
(...)
O simples enunciado de pleito a ferir-se, estou certo que interessar-vos-á, despertando a cooperação espontanea de vossos esforços no sentido de serem eleitos co-religionarios, cujos nomes constituam proveitoso e seguro penhor de uma boa administração municipal. Assim pensando, com assentimento e applausos de co-religionarios prestantes, resolvi sujeitar á apreciação e escolha do sr. Dr. Antonio Augusto Borges de Medeiros, eminente chefe do nosso partido o nome do illustre sr. Dr. Nelson Coelho Leal, para ser suffragado pelo eleitorado republicano e independente ao cargo de intendente municipal. Este distincto engenheiro civil possúe um conjuncto de qualidades e virtudes que asseguram ao nosso municipio uma administração fecunda em melhoramentos materiaes, progressista, systematica e garantidora do bem estar de nossos co-municípes. (...) Crente de que concorrereis pressurosos ás urnas, votando neste candidato e assim prestando valioso auxilio para fortalecerem-se os laços de disciplina de nossa aggremiação politica, bem como para o engrandecimento de nosso municipio, subscreve-me co-religionario
Att.º Am.º e Obr.º
Isidoro Neves da Fontoura.
Cachoeira, 17 de Junho de 1904.
Este manifesto do Coronel Isidoro foi vertido para o idioma alemão, publicado ao lado do original em português.
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O Comércio, 22-6-1904, p. 2 |
Diversos distritos apoiavam o nome do Coronel David Soares de Barcellos para o cargo de intendente e também se serviam das páginas do jornal para defenderem seu candidato.
Na edição de 13 de julho de 1904, O Commercio publicou o Decreto n.º 734, de 8 de julho daquele ano em que o governo do estado declarava inconstitucionais e alterava algumas disposições da lei eleitoral do município de Cachoeira. Dias depois, um telegrama do presidente do estado adiou a eleição para 20 de agosto. Mas um contratempo acabou por mudar o rumo das candidaturas: a desistência de concorrer do Cel. David Soares de Barcellos. A União Republicana, associação política fundada meses antes, indicou para o lugar do Cel. Barcellos o nome de Carlos Pötter como candidato do Partido Republicano, permanecendo Isidoro Neves, chancelado por Borges de Medeiros, a apoiar a candidatura de Nelson Coelho Leal.
Finalmente, em 20 de agosto, ocorrida a eleição, saiu vencedor Carlos Pötter, o candidato dos dissidentes do PRR, com 833 votos, conquistando Nelson Coelho Leal 435. Mas eis que uma correspondência do presidente do estado, Dr. João Abbott, anulou o pleito:
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IM/CM/SE/CR-Caixa 9 |
Estado do Rio
Grande do Sul
Secretaria de
Estado dos Negocios do Interior e Exterior
Porto Alegre, 16 de setembro de
1904.
Aos Sr.s Presidente e
membros do conselho municipal da Cachoeira:
Communico-vos, para
os devidos effeitos, que o Sr. Presidene do Estado lançou, a 12 do corrente
mez, o seguinte despacho no recurso que lhe apresentaram os cidadãos Antonio
Antunes de Araujo e Virgilio Carvalho de Abreu contra a apuração que esse
conselho fez da eleição de intendente e conselheiros – ahi effectuada a 20 de
agosto findo: “Tendo a juncta apuradora decretado a nullidade das 8.ª e 16.ª
secções, pelo facto de conter a acta d’aquella duas assignaturas escriptas com
tinta differente e ter sido a acta d’esta fírmada por pessoa extranha e somente
competente para a sua transcripção no livro respectivo; e, considerando nullas
as eleições das 2.ª, 17.ª e 18.ª secções, em que deixou de ser observado o voto
a descoberto; a da 12.ª, por terem sido interrompidos os seus trabalhos, contra
expressa disposição do artigo 74 da lei eleitoral do Estado; a da 14.ª, por não
estar devidamente concertada a acta, que não foi transcripta no respectivo
livro; a da 15.ª, por não ter a eleição se effectuado no edificio préviamente
designado, deixando de se observar o disposto nos §§ 3.º e 4.º do artigo 51;
feita a exclusão dos votos recebidas n’essas secções, chega-se á conclusão de
que o resultado final da votação soffre completa alteração, ficando em minoria
o candidato mais votado para intendente nos termos, pois, do numero 5 do artigo
96 da lei de 12 de janeiro de 1877, declaro nulla a eleição de intendente e
conselheiros municipaes, effectuada a 20 de agosto proximo findo, e determino
que se proceda a nova eleição, com observancia das formalidades legaes.”
Saude de
fraternidade.
Dr. João Abbott
Por denúncia de irregularidades apontadas por Antonio Antunes de Araujo e Virgilio Carvalho de Abreu, houve então a anulação da eleição. Entre a denúncia e a chegada da correspondência do presidente do estado ao Conselho Municipal, até banquete comemorativo da vitória de Carlos Pötter aconteceu. Artigos de celebração de sua vitória também estamparam várias páginas do jornal O Commercio, bem como protestos pela anulação quando esta chegou ao conhecimento público.
Cachoeira viveu dias de tumulto na política até que, em 20 de setembro, foi nomeado para dirigir o município o médico Viriato Gonçalves Vianna, cujo nome parece ter posto fim às desavenças das duas facções que se formaram dentro do Partido Republicano, como bem retrata a primeira página da edição do jornal do dia 21 de setembro de 1904, pulsante de homenagens, traduzidas sinteticamente em uma das frases publicadas:
Succede, felizmente, ao digno coronel David Soares de Barcellos, na gestão dos negocios municipaes, um cidadão de alta competencia, de virtudes civicas e privadas que muito o recommendam á estima de seus patricios, e que são penhor seguro de uma nova phase de ordem e de paz, de progresso e de concordia.
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O Comércio, 21/9/1904, p. 1 |
Viriato Gonçalves Vianna ficaria em uma espécie de mandato de conciliação entre os republicanos até ser eleito dois meses depois. Sua administração ficou marcada pelo incentivo à instalação do primeiro hospital de Cachoeira, obra também abraçada e levada adiante pelo seu sucessor, médico Cândido Alves Machado de Freitas.
MR
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