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Conceição X Paineiras?

O Arquivo Histórico dispõe de uma seção de imprensa, responsável pela organização, manutenção e disponibilização das coleções de jornais cachoeirenses a todos os interessados, sejam eles pesquisadores, estudiosos ou apenas curiosos.
Uma das coleções de jornais que integra esta seção, e que é fonte rica de subsídios para entendimento de como a cidade se comportava no início do século XX, é a coleção do jornal Rio Grande, que circulou entre os anos de 1905 e 1914. Pois no volume do ano de 1911, publicação do dia 22 de janeiro, à página 2, há uma interessante crônica, assinada pela abreviatura E. C., em que a Praça da Conceição, atual Balthazar de Bem, como se vida tivesse, dá mostras de ciúmes do movimento das Paineiras, em alusão ao deslocamento da população para a Avenida das Paineiras, atual Rua 7 de Setembro, e, por conseguinte, para a outra praça, a José Bonifácio...
Eis a crônica Conceição - Avenida:


Recanto da Praça da Conceição, fronteiro ao Teatro Municipal
- fototeca Museu Municipal
Era na Praça da Conceição.
A lua estava, neste momento, em todo o seu esplendor.
Uma brisa calma e monótona, deslizava mansamente, acompanhada de perfumes inebriantes dos jardins e dos pomares.
Ao longe, muito longe, o quedar das águas duma cachoeira quebrava o silêncio da enluarada noite, enquanto nos ares encruzavam-se aves noturnas, que eram de quando em vez ausentadas com a presença de alguma ou outra pessoa descrente que, desprezando a onde torcicolosa da alegria, do prazer na encantadora Avenida das Paineiras, procurava ali lenitivo para uma ilusão perdida!...
Enquanto a brisa corria silenciosa, enquanto as águas quedavam-se nas cachoeiras, mergulhando em seu seio os raios de prata da majestosa lua, enquanto na risonha Avenida o vai-vem encantador do belo sexo, entre sorrisos e inocentes expansões de alegria envolto em perfumes se deslizava, - ali, velho jardim abandonado, que outrora tantos sorrisos encerrou, foi se ouvindo pouco a pouco um lamento, entrecortado de vez em quando com ais prolongadas que, ouvindo-se, talvez nenhum ente humano pudesse conter as lágrimas.
Era uma voz pungente que, entre soluços, do centro do Jardim, assim se ouvia, cheia de descrença e esperanças:
- Pobre de mim, Jardim abandonado que tantos sorrisos encerrei, numa onda de prazer, entre esperanças frívolas, entre a paz e o amor. Das crianças era o postre* da felicidade, nos inocentes folguedos; do belo sexo fui o esconderijo de seus amores, onde em apaixonados colóquios detinha-o até alta noite; dos velhos fui outrora o doce refúgio, nestas tardes amenas, nestas noites de primavera e verão que, revendo o espelho do passado, ali permaneciam horas inteiras, entre o evoluir da criançada folgazã, entre os prazeres descuidosos da mocidade.
Como era belo, nas tardes de domingos, entre o contentamento que brincava nos lábios de todos, entre a exibição de finíssimos toiletes do belo sexo; ouvir, outrora, as notas uníssonas da clássica banda de música do maestro Trindade!...
E não era só.
O saudoso Clube Caixeiral também deu-me muita honra.
No meu seio foi, então, erguido expressivo coreto cheio de flores, engalanado com o esplendor d'uma mocidade sadia e vigorosa que, entre elevados prazeres, deu-me a suprema honra de, por muitas vezes, ouvir os acordes sonorosos daquela saudosa banda de música cheia de esperanças, de risos e flores.
No entanto, depois de tantos sorrisos encerrar, de tantas glórias e honras obter, eis que uma linha de feias Paineiras, num relâmpago de tempo, se apressa a roubar-me a primazia, as glórias, os sorrisos, glórias e honras essas adquiridas no tirocínio bem largo, de muitos longos anos!...
É triste. Umas colunas de árvores, favorecidas pelos sopapos do progresso, plantadas a esmo, tira-me agora o que eu levei tanto tempo a adquirir.
Não mais aquelas fagueiras tardes, aquelas risonhas noites, cheia de esperanças frívolas, cheia de encantos da mocidade!
Tudo agora em mim é deserto, é tétrico, é insípido, só acalento em meu seio velhas descrentes do mundo e viúvas sem esperanças e ilusões!
No entanto, naquele improvisado bosque de "Paineiras", encerra-se hoje "le mond smart Cachoeirense", regorgita num chique indefinível, num toilete gracioso e encantador, toda a onda feminil de minha terra.
Que quer se hoje tudo está mudado: esquece-se as honras de alguns anos pela novidade de um dia!...
Tudo é pelo modernismo.
Restar-me-á, agora, somente as glórias do Passado.
Viverei desse passado glorioso, dessas aventuras que se foram caminho da eternidade.
Consolar-me-ei com o meu bom irmão aqui do lado que nunca teve a sorte de ser frequentado, nem a honra de um banco que pudesse acolher um vagabundo, ou um descrente do mundo. Sempre se conservou fechado, não tendo o prazer de ser pisado por graciosos e pequeninos pés do belo sexo – nasceu, mas não viveu.
Aqui serei o refúgio dos descrentes, dos velhos, celibatários e ali, no meu irmão natimorto, o necrotério de meus antepassados, o esquife de minhas ilusões.
Tudo me despreza, foge-me o belo sexo e talvez não mais na próxima primavera o lindo sabiá mimoso que há bem pouco ainda, com o seu poético cântico, me enchia de prazer e alegria, me honre com sua presença.
Até um quiosque** pequenino lembraram-se de roubar-me paras as "Linhas de Paineiras".
E assim, tirando-me tudo, acabarão por tirar-me a própria vida.
Eu que previa o futuro risonho, que preparava-me para receber a luz elétrica, pensando melhorar de situação...
Será tudo ao contrário.
A "Avenida" inundará de luz o belo sexo entre os requintes da moda, entre o progresso que domina os povos civilizados, ali afluirá, por certo, repleto de encanto e formosura, trescalando perfumes místicos entre os acordes sonorosos da arte de Mozart.
E o pobre jardim, que era o refúgio da mocidade, albergando velhos desiludidos do mundo terá que, falado da ignota inveja, de se conformar com a sorte, até que um dia, definhando tudo, transponha para sempre os umbrais da eternidade!
Ele viverá, agora, do presente e eu unicamente do passado, feliz que outrora fui, sem jamais pensar no triste abandono de hoje.
*
**
Terminara-se, lentamente, estes queixumes, enquanto a brisa beijando as folhas do arvoredo passava descuidosa e a poética lua, expargindo seus raios de prata, adornava o infinito espaço.
E, ao longe, na "Avenida", a onda "smart" do feminismo nos galanteios da moda, aprimoradamente vestida, com finíssimos e modernos chapéus à cabeça, extravasava de encantos, de perfumes místicos, de prazeres infindos, uma cidade que trabalha para a conquista do progresso!...
E. C.

Não é um privilégio poder folhear estas pérolas da nossa imprensa pretérita?

* postre: sobremesa
** O quiosque da Praça José Bonifácio, uma das atrações nas proximidades do Mercado Público, na verdade foi transferido da Praça da Conceição, hoje Balthazar de Bem, onde havia sido colocado em 1906.

Comentários

  1. Explicando meu comentário: o assunto era outro mas o olho mágico da Mirian,ligado ao cérebro e ao coração "bateu" nesta preciosidade! quem sabe foi um torcicolaso?

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