Pular para o conteúdo principal

A sanga Micaela

Em tempos de chuvas abundantes e dos inúmeros transtornos causados por elas, cabe a cada um de nós fazer um exercício de reflexão a respeito da forma como tratamos o ambiente que nos cerca.

O lixo que não encontra o receptáculo próprio vai para a sarjeta e obstrui o caminho natural das águas pluviais, as sangas e córregos viram depósitos de excrementos, objetos, utensílios e equipamentos de toda natureza, quando deveriam apenas escoar livremente seus mananciais... Enquanto o comportamento humano não mudar e as regras de higiene e de cuidados com os espaços públicos e naturais não forem assimiladas pela população, qualquer chuvarada, seja em que tempo for, irá causar danos cada vez maiores e mais traumáticos para todos, direta ou indiretamente.

No acervo de imprensa do Arquivo Histórico, existem relatos de incontáveis situações de cheias e suas consequências em Cachoeira do  Sul. Voltemos no tempo 110 anos, através da edição do jornal O Commercio, de 11 de janeiro de 1905, em que foi publicada a interessante crônica  A Michaela, de Julio Prates, em que seu autor relata o descuido com uma das nossas mais importantes sangas e metaforicamente remete o leitor às maquinações do seu tempo:

Início da crônica A Michaela - jornal O Commercio, 11/1/1905
- Acervo de Imprensa do Arquivo Histórico
Roida por uma affecção estomacal, cancerosa, vae arrastando a lethal existencia, infeccionando o ambiente, os visinhos que a supportam e os transeuntes que não lh’a podem evitar, a tradicional Michaela.
Dir-se-á que a andrajosa e gastralgica velhinha, dominada de voraz appetite, consome uma boa parte da seiva d’este povo e... todos os presentes que elle lhe atira, como si a enferma seja uma leprosa!
Ouvimol-a:
“Aqui surgi em tempos immemoriaes.
Tenho soterrado desde remotas eras, cumprindo o fatalismo inexoravel e regenerador da justiça Divina, d’essa imperecivel verdade que vem e que se faz, mais cedo ou mais tarde, igualando a todos os mortaes, innumeras vaidades e criminoso orgulho concebiveis por frageis e tolas creaturas, actuadas por um poder todo ephemero e transitorio, como transitoria é a minha propria existencia!
Já reinei, pois, porém o meu reinado não excedeu a esphera de minha acção, e, comquanto só me inspirasse exclusivamente na pratica do bem cedi á lei mutavel das cousas, voltando á igualdade e mediocridade do meu ser.
Para os meus primeiros povoadores tive fóros de rainha; depois occupei dominio nos cerebros phantasiosos, que a meu respeito aventaram concepções lendarias e imaginosas; mais tarde occultei no meu collo, então amplo e sedoso, centenas de perseguidos e um nostalgico asceta que, nas minhas ribanceiras escarpadas mas bordadas de verdejantes cedrinhos, fruiam-me as frescas sombras...
..............................................................................................................................................
As gerações succederam-se, e a penultima que tentou extinguir-me já passou como passam os annos sobre o meu leito cavo. O barbaro que a empolgou quasi conseguiu o seu funesto intento, mas, outros tempos, outros governos e, eu vivo e viverei como uma reliquia necessaria á celebridade local.
Quero porém viver para o mal.
O meu leito formado por um lodaçal putrido e infecto está adrede preparado para a proliferação microbiana; as minhas margens são o receptaculo de materias, lixo e detritos fermentados; as minhas escarpas, o repouso dos cadaveres da bicharia vagabunda encontrada putrefacta nas ruas e sargetas – meus agentes principaes.
Quero e viverei para o mal já que o bem é tão mal recompensado.
Hei de envenenar, calma e reflectidamente, pari-passo, esta população perversa, que, sem cuidados por sua saude, sem interesse pela hygiene e embellezamento de suas praças faz-me ingerir tão máus alimentos...”
..............................................................................................................................................
Sim. Póde ser que tu queiras! Esqueces que tens á cabeceira um facultativo?
Roma não se fez n’um dia.
Mais do que o teu saneamento é necessaria a tua extincção; entretanto cogita-se d’aquelle e pensa-se d’esta.
Em breve verás, que apezar do teu poder e das tuas lugubres intenções serão injectados em tuas mortiferas veias poderosos antisepticos, saneadores do mal corrosivo.
Nesse dia, Michaella, a tua agua que alimentou e accendeu tanto fogo de amor, que foi o iman dos forasteiros ás brancas e nevadas grinaldas das minhas gentis conterraneas, voltará a ser limpa e pura como a virtude d’estas.
Deus o queira!
Julio Prates.*

Como se vê, mudam os tempos, mas não mudam os homens!

* Julio Prates pode ser alusão à liderança política de Julio Prates de Castilhos, falecido em 24/10/1903.

(MR)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A enchente de 1941

As grandes enchentes de 2015 remetem o interesse para eventos climáticos semelhantes ocorridos em outras épocas. De imediato, a grande enchente de 1941, referência para a magnitude deste tipo de calamidade, vem para as rodas de conversa, recheia as notícias da imprensa e, já mais raramente, ainda encontra testemunhas oculares para darem suas impressões. O jornal O Commercio , edição do dia 14 de maio de 1941, constante da coleção de imprensa do Arquivo Histórico, traz na primeira página a repercussão da grande cheia, refere os prejuízos na economia, especialmente no setor orizícola, e dá ciência das primeiras providências das autoridades após a verificação dos estragos: Apezar das ultimas chuvas continúa baixando o nivel das águas Jamais o coração dos riograndenses se sentiram tão cheios de tristeza, de aflição, de tantas apreensões, como por ocasião dessa catástrofe imensamente incalculaveis nos prejuizos, estragos e fatalidades, derivados das incessantes e cerradas chuva

Casa da Aldeia: uma lenda urbana

Uma expressão que se tornou comum em nossos dias é a da "lenda urbana", ou seja, algo que costuma ser afirmado pelas pessoas como se verdade fosse, no entanto, paira sobre esta verdade um quê de interrogação!  Pois a afirmação inverídica de que a Casa da Aldeia é a mais antiga da cidade é, pode-se dizer, uma "lenda urbana". Longe de ser a construção mais antiga da cidade, posto ocupado pela Catedral Nossa Senhora da Conceição (1799), a Casa da Aldeia, que foi erguida pelo português Manoel Francisco Cardozo, marido da índia guarani Joaquina Maria de São José, é mais recente do que se supunha. Até pouco tempo, a época tida como da construção da casa era dada a partir do requerimento, datado de 18 de abril de 1849, em que Manoel Francisco Cardozo: querendo elle Suppl. Edeficar umas Cazas no lugar da Aldeia ecomo Alli seaxe huns terrenos devolutos na Rua de S. Carlos que faz frente ao Norte efundos ao Sul fazendo canto ao este com a rua principal cujo n

Hospital da Liga - uma obra para todos

Interessante recobrar a história de construção do Hospital da Liga Operária, o gigante do Bairro Barcelos, que se ergueu sob a batuta do maestro do operariado cachoeirense: o vereador José Nicolau Barbosa. E justamente agora que o município planeja desapropriá-lo para nele instalar o sonhado curso de medicina. José Nicolau Barbosa apresentando a obra do Hospital da Liga Operária - Acervo familiar O sonho do Nicolau, como ficou conhecido o empenho que aplicou sobre a obra, nunca chegou a se realizar, uma vez que a edificação não pôde ser usada como hospital. Ainda assim, sem as condições necessárias para atendimento das exigências médico-sanitárias, o prédio de três andares vem abrigando a Secretaria Municipal de Saúde. Mesmo desvirtuado de seu projetado uso original, mantém o vínculo com o almejado e necessário atendimento da saúde do trabalhador cachoeirense. O Jornal do Povo , edição de 1.º de março de 1964, traz uma entrevista com José Nicolau Barbosa, ocasião em que a reportagem do