Foi fundado em Cachoeira do Sul, no dia do aniversário natalício do homenageado, 19 de novembro, o Instituto Histórico Borges de Medeiros, iniciativa de Suzana Luderitz Saldanha, bisneta do político que por mais tempo governou o Rio Grande do Sul.
A Estância do Irapuazinho, propriedade rural de Antônio Augusto Borges de Medeiros e sua família, no interior de Cachoeira do Sul, foi o local escolhido por ele para o descanso quando afastou-se definitivamente da política. Para lá correram muitos políticos ou seus enviados, não só do Rio Grande, mas do Brasil, atrás de aconselhamentos e pareceres sobre o cenário estadual e nacional. Repórteres de vários jornais também buscavam por ele, ávidos de impressões do velho líder.
Em 1931, ano que antecedeu a Revolução Constitucionalista, o jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, enviou para Cachoeira, no mês de julho, um jornalista para acompanhar a visita que Flôres da Cunha, Interventor Federal, e Oswaldo Aranha, Ministro da Justiça, fizeram ao chefe do Partido Republicano, Dr. Borges de Medeiros. O jornal local, O Commercio, reproduziu em suas páginas trechos da reportagem feita pelo profissional de Porto Alegre:
SEIS HORAS DE PERMANENCIA NO RETIRO DO IRAPUAZINHO
Impressões de um redactor do “Correio do Povo”
Um dos nossos
brilhantes collegas do “Correio do Povo”, que se tem assinalado nestes ultimos
tempos por uma serie de entrevistas de alto valor, acompanhou a comitiva do sr.
dr. Oswaldo Aranha, ministro da Justiça e general Flôres da Cunha, Interventor
Federal, á visita feita por ss. exas. ao egregio chefe do Partido Republicano
sr. dr. Borges de Medeiros.
É
desse trabalho que ainda mais salienta as qualidades jornalisticas do reporter
que resumimos e extractamos o que se segue.
“Passavam
15 minutos da meia noite quando o trem sahiu á gare da estação de Porto Alegre.
A viagem decorreu animada e sem incidentes de especie alguma. “Dir-se-ia que
esta viagem, commenta o redactor, vae transformar-se numa licção pratica da
campanha da boa vontade.”
E
apreciando a obra do interventor, salienta:
“O
general Flôres da Cunha, expondo a situação do Estado ao sr. Oswaldo Aranha
confessa com melancholia:
A
situação é tal que minha tarefa, no governo, está condemnada a isto: manutenção
da ordem e arrecadação. Não tenho margem para iniciativas, para um governo
constructor.
O
ministro da Justiça interrompe-o:
-
E você quer obra mais necessaria, no momento, do que essa? Um governo que, sob
a imposição das circumstancias financeiras e economicas, se vota á defesa da
estabilidade moral e material da sua terra, para que os seus successores possam
construir sobre alicerces tão firmes, é um governo digno do respeito collectivo.
O
interventor deplora a não realização de um largo programma de emprehendimentos.
Por temperamento, elle sente o dynamismo da raça dos construcotes. Mas é um
prisioneiro das circumstancias.
As
palavras que, horas depois, ouviria do sr. Borges de Medeiros, já lhe
dissiparam, por certo, a tristeza de não poder traduzir em factos o seu sonho
de realizador energico...”
E
continua, depois de uma digressão sobre a palestra que, no salão, encurtou as
horas de viagem:
“Após
quatro horas de viagem, na estrada mediocremente carroçavel, avista-se, no topo
de uma coxilha, a fazenda de Irapuazinho.
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Casa onde viveu Borges de Medeiros no Irapuazinho - Imagem: Divinut Empresa - 19/11/2015 |
-
Lá está a casa, - informa-nos o general Flôres da Cunha. Á medida que nos
approximamos da fazenda, a nossa curiosidade augmenta. Como será esse homem
que, ainda fóra do poder, representa uma força moral incontrastavel? Haverá
exagero nos perfis que lhe traça a imaginação literaria dos seus
entrevistadores? Um passado não distante acode-nos á memoria. Dentro da
atmosphera de exaltação partidaria em que nos criámos, o lexico politico do
tempo reservava uma palavra aspera para caracterizar o antigo presidente do Rio
Grande do Sul: “dictador”. Ahi um dictador, naquelles tempos, era um monstro,
uma entidade apocalyptica, que devorava a Liberdade (com inicial maiuscula) com
um appetite rabelaiseano. Essa impressão de dictador, de um modo generico, até
há menos de um anno, nos feria a sensibilidade. Foi o sr. Getulio Vargas o
cavalleiro sem medo que nos desencantou o castello onde vivia o temivel dragão.
A dictadura agora é uma cousa tão lyrica como a propria democracia. O monstro
tornou-se um bicho tão domestico, aos olhos das gerações actuaes, que os homens
de imprensa passam hoje a matar o seu tempo, no jogo innocente de cravar-lhe
alfinetes no couro macio. Á perspectiva do trato com o sr. Borges de Medeiros,
não era a reminiscencia dictatorial que nos fazia bater o coração. Era, acima
de tudo, a sua projecção actual. Para elle, como para um oraculo, correm os
homens, em busca de uma palavra orientadora ou de um conselho definitivo.
Irapuassinho [sic], já dissemos e
repetimos agora, é uma instancia oracular, cujas sentenças os correligionarios
do sr. Borges de Medeiros acceitam como um artigo de fé e os adversarios do
chefe do Partido Republicano respeitam, como uma lição de bom-senso e
sabedoria. Aquella casa modestissima, que está deante de nós, em certos
momentos da segunda Republica, se transforma no “centro da terra”, exactamente
como o templo de Delphos para os pythios das delegações spartanas. Por que? Por
uma necessidade peculiar á natureza humana, em todas as phases de civilização?
Esta explicação, meramente psychologica, não basta. O phenomeno revela um dos
aspectos curiosos da democracia, em todas as épocas: a necessidade da
existencia dos “chefes”, dos conductores de massas. A soberania popular, em
ultima analyse, se reduz a isto: a evidencia da sua fragmentação através de
vontades individuaes directoras ou inspiradoras. Em resumo o chefe, o guia, o
“leader”, como centros de gravitação das aspirações colectivas.
DEANTE DO SR. BORGES DE MEDEIROS
Deante
do sr. Borges de Medeiros, após uma acolhida cordealissima, continuamos a
interrogar-nos mudamente:
-
Mas é esse homem franzino, de uma suavidade de tratamento que logo nos torna
familiar a sua presença, que estende o seu governo moral a todo o territorio da
Republica?
Não
ha duvida nenhuma, é elle mesmo: aqui estão, para ouvil-o, um ministro e um
interventor...
Meia
hora depois da nossa chegada, se o sr. Borges de Medeiros não nos impressionára
pela ausencia da dureza glacial das suas atitudes, desmentindo o retrato feito
pela imaginação, nos commovia em face da simplicidade dos seus habitos, da
quase humildade da sua vida, naquella vivenda rustica. Custava-nos crêr que um
homem, depois de haver enfeixado nas mãos uma somma tão grande de poder, se
resignasse a viver numa obscuridade tão flagrante. Nessa renuncia há um fremito
de silencioso mas formidavel heroismo. Pouco e pouco, aquella obscuridade
heroica se transforma, para surgir no seu verdadeiro sentido, para surgir como
expressão de grandeza. Se, politicamente, nos sentimos tão separados hoje do
sr. Borges de Medeiros como hontem, no torvelinho da lucta, comprehendemos que
ao jornalista, num momento em que ensaia o papel chronista, lhe incumbe o dever de proclamar esse traço
de grandeza na personalidade do chefe republicano.
Durante o almoço, as nossas
observações se enriquecem. O illustre chefe republicano é um conservador sobrio
mas interessantissimo. Insulado no ermo, elle está em dia com o mundo e com a
sua época. Apesar da sua feição moral conservadora – reflexo da longa passagem
pelo governo – o solitario de Irapuazinho não crystalisou num grau de cultura
refractaria ás acquisições progressivas reveladas pela evolução intellectual.
Elle acompanha mentalmente a sua época. Homem de experiencia, de agil
apprehensão de fórmas vivas da realidade, as ideologias passam pelo seu
espirito sem lhe produzirem damno. Aceita o que a verdade experimental indica
ser aceitavel, sem o feiticismo das abstracções doutrinarias. Querem uma prova?
Eil-a: a sua recente entrevista ao “Estado do Rio Grande”.
Depois
do café, o sr. Oswaldo Aranha offereceu-lhe um cigarro. O sr. Borges de Medeiros
pergunta:
-
Cigarros do Rio?
-
Sim.
-
Pois aceito, não só por ser do Rio, como por se tratar de um cigarro
ministerial...
O
ministro da Justiça passa para o gabinete onde o sr. Borges de Medeiros, fóra
do governo, continua a dar as suas audiencias. Uma saleta inundada de claridade
e com um armario de livros.
Retiramo-nos,
comprehendendo que se ia tratar de assumpto de grande transcendencia politica.
O general Flôres, o coronel Lucio Esteves e o major Alberto Bins
acompanharam-nos. Dentro de alguns minutos, uma voz forte chama pelo nome do
interventor:
-
José Antonio!
É
o ministro da Justiça que chama o general Flôres da Cunha para o gabinete do
ex-presidente.
A
entrevista entre os srs. Borges de Medeiros, Flôres da Cunha e Oswaldo Aranha
se prolonga até ás 4 horas da tarde. A essa hora, é interrompida para o café.
Observamos as physionomias: todas revelam satisfação. O conclave vae,
naturalmente, ás maravilhas...
-
Vamos recomeçar a nossa palestra?
O
ministro e o interventor acompanham o chefe do Partido Republicano até á
bibliotheca. Sahimos para fóra, novamente, repousando o olhar na linha sonhadora
das serras azuladas de Caçapava.
A
conferencia, no interior da saleta, decorre tranquilla. A’s cinco horas, dão-na
por terminada. Chega a vez do prefeito. Elle marcha, calmo, para a audiencia, a
fim de examinar com o chefe, a crise do arroz e a posição do Syndicato dos
Arrozeiros deante dos interesses da produção cachoeirense. Depois o coronel
Lucio Esteves, entretem num “tête-á-tête” de 15 minutos com o sr. Borges de
Medeiros. Chega a nossa vez. Seis horas da tarde. Devemos regressar
incontinente, segundo o convite do interventor.
O
sr. Borges de Medeiros acolhe-nos com um sorriso se bondade.
-
Como lamento não ter podido conversar, como eu desejava, com o senhor!
Agradecemo-lhe
a delicadeza das palavras, respondendo-lhe tambem:
-
Não viemos entrevistal-o, pois a sua ultima entrevista é recentissima e dahi
até hoje nada surgiu que lhe possa merecer novas declarações. Contentamo-nos
com a honra de conhecel-o pessoalmente...
O
chefe republicano é liberal para com o jornalista:
-
Já disse ao Oswaldo a ao Flôres que lhe déssem um resumo do meu pensamento.
-
Muito agradecido.
A’
hora da despedida, o sr. Borges de Medeiros tem uma palavra para cada um.
Ao
sr. Oswaldo Aranha elle abraça carinhosamente e pede transmittir um abraço ao
sr. Getulio Vargas.
Abraçando
o general Flôres da Cunha, diz:
-
Tens que continuar no governo até o fim. Tu és o melhor interventor que o
Brasil tem no modelo dos interventores.
Partimos.
Rapidamente, as sombras da noite envolvem e fazem desapparecer fundida na treva,
a casa pobre do cidadão que, sendo, no seu afastamento do mundo, um paradygma
de nobre desinteresse, é uma alta lição de belleza moral, dentro da historia do
regime.
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Imagem: Divinut Empresa - 19/11/2015 |
O
trem especial em plena marcha, a caminho de Porto Alegre, lembramos ao sr.
Oswaldo Aranha a promessa do chefe do Partido Republicano.
O
ministro da Justiça declara-nos:
-
Voltamos, tanto eu como o interventor, satisfeitissimos do encontro com o dr.
Borges de Medeiros. Resumo as minhas impressões nesta phrase do general Flôres,
proferida após a nossa entrevista com o chefe: “Estamos, mais do que nunca,
solidarios com o governo provisorio da Republica”.
Prossegue:
-
O dr. Borges de Medeiros expressou a sua solidariedade com a obra
administrativa e politica do governo provisorio. Essa solidariedade representa
um voto de indispensavel confiança, de que precisamos para a realização dos
compromissos que assumimos perante o Brasil. Ou inspiramos confiança ou não. Se
a inspiramos, levaremos a cabo a obra a que estamos dedicando todas as energias.
Volto, portanto, mais do que satisfeito, com o que ouvi do eminente chefe do
meu Partido. A elle falei com a maxima franqueza, com a maior sinceridade. E é
ainda com essa maior sinceridade e essa franqueza que irei falar agora aos
libertadores, por intermedio do dr. Raul Pilla.
O
governo provisorio conta então com o apoio decidido do dr. Borges de Medeiros
para realizar as finalidades do seu programma?
-
Sem duvida. Não ha divergencias.
-
Mas o chefe republicano é pela reconstitucionalização immediata do paiz...
-
Ninguem é contra a reconstitucionalização. Apenas nenhum de nós quer que se
faça obra apressada. As declarações do sr. Assis Brasil, de chegada ao Rio, são
bem expressivas.
(...)
O
ministro da Justiça depois de mencionar a palavra do sr. Assis Brasil,
accrescenta:
-
O dr. Borges de Medeiros acha que um anno é o prazo razoavel para a
normalização da vida politica nacional. Quanto á constituição, elle não é
partidario da outorga de uma lei suprema ao povo brasileiro. O que elle suggére
é que se elabore uma constituição provisoria, uma especie de ante-projecto da
carta fundamental, para ser submettida ao exame das varias correntes de
opinião. A constituinte póde adoptar ou regeitar essa constituição provisoria,
aceitando-a em parte ou substituindo-a por outra”.
Termina
o “Correio do Povo” a sua exposição com
esta nota:
“Já
estavam escriptas estas impressões da viagem a Irapuazinho, quando tivemos
noticia da conferencia que se effectuou, ainda hontem, numa das salas do
palacio do governo, entre o ministro da Justiça e o dr. Rual [sic] Pilla, presidente
do directorio Central do Partido Libertador. A entrevista, que foi longa,
decorreu num ambiente de grande cordealidade. Entre os srs. Oswaldo Aranha e
Raul Pilla ficaram definitivamente combinadas as directivas da acção do Rio
Grande do Sul deante da obra a realizar pelo governo provisorio da Republica.
Depois do entendimento de Irapuazinho, a conferencia de hontem entre o titular
da pasta da Justiça e o chefe libertador veiu encerrar a phase das “démarches”
motivadas pela viagem do primeiro ao Rio Grande do Sul.
O
general Flôres da Cunha, com quem falamos depois da meia noite, nos declarou a
proposito:
-
A coordenação dos pontos de vista entre os dois partidos politicos do Rio
Grande foi definitivamente assentada nestas duas ultimas conferencias. Pode o
“Correio do Povo” declarar que foi completamente coroada de exito a missão que
trouxe o ministro Oswaldo Aranha ao Rio Grande do Sul”.
(Publicado no jornal O Commercio, Cachoeira, Ano XXXII, N.º 1651, 22/7/1931, p. 3.)
MR
Maravilhosamente apropriada esta publicação realizada pela Míriam Ritzel. Todos nós do IHBM agradecemos de coração porque aqui está a razão do nosso sonho de restaurar o Irapuazinho e colocá-lo à disposição para reflexões das próximas gerações. Muito Obrigada.
ResponderExcluirEsta reportagem dá razão e sentido histórico ao propósito do IHBM e, mais do que isto, dá a dimensão do prestígio e da influência que Borges de Medeiros teve sobre a política e a cultura do RS. Cachoeira nunca esteve tão em evidência quanto ao tempo em que ele, mesmo em recolhimento, exercia um poder incrível sobre o cenário político. Então o compromisso desta terra está posto: "o oráculo" tem que permanecer em materialidade para não desaparecer na volátil memória que infelizmente teima em pairar sobre muitas cabeças... Mirian Ritzel
ResponderExcluirLindo e esclarecedor texto.Parabens!
ResponderExcluirLindo e esclarecedor texto.Parabens!
ResponderExcluireu morei ali. minha familia tambem. seus merdas
ResponderExcluirSensacional... tive o prazer de conhecer a fazenda e até pernoitar quando era propriedade da família Chiapetta.
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