Uma série de documentos advindos dos aparelhos da justiça, com datas anteriores à Revolução Farroupilha e que estão cuidadosamente preservados no Arquivo Histórico, começaram a passar por processo de transcrição. Sob o olhar atento da assessora Maria Lúcia Mór Castagnino, a Ucha, as urdiduras do passado têm vindo à tona. E as situações são surpreendentes e às vezes inusitadas, revelando aspectos de um tempo distante e absolutamente distinto do atual.
Ucha em atento trabalho de transcrição |
O documento em transcrição é um auto cível de averiguação, datado de 16 de dezembro de 1829, cujo suplicante era Jozé Raimundo da Cunha, senhor da escrava Matildes, que estivera desaparecida desde setembro daquele ano. A audiência e lavratura dos correspondentes registros foram feitas
em caza de morada do Juis de Pás Suplente o Capitão Bernardo Moreira Lirio onde Escrivão do seu Cargo adiante nomeado e asignado foi vindo e sendo ahi tão bem prezente o Capitão Jozé Raimundo da Cunha (...).
Perguntado pelo juiz se a escrava era sua e a quantos anos, Jozé Raimundo respondeu que Matildes era de sua propriedade há 34 anos, havida por dote de sua sogra, D. Jacinta Maria de Jesus, viúva de Antonio Simoins Teixeira, e que estava desaparecida desde setembro de 1829. Inquerido sobre o motivo da fuga,
Respondeu que sabia que Niceto Ferreira Lopes a tinha ceduzido para a fuga dizendo-lhe que ella hera Liberta no batismo que elle Aniceto tinha vendido para Porto Alegre a Jozé Francisco Duarte a certidão de edade e dinheiro que dela tinha recebido para promover a sua Liberdade.
Passando a interrogar a escrava, acompanhada pelo curador para isto nomeado, Jozé do Prado Lima, o juiz perguntou-lhe se de fato havia sido escrava do casal da
Finada dona Jacinta Maria de Jesus e se tinha passado ao poder do suplicante e como. Respondeu que tinha sido Escrava de Joze Ramos morador na Capella de Viamão que dele passou ao poder de Dona Jacinta Maria de Jesus e que desta passou ao poder do Suplicante em dote por se aver cazado com dona Angelica filha da mesma Dona Jacinta Maria de Jesus.
O juiz perguntou ainda se durante todo esse tempo ela estava
serta de que hera captiva e como tal o servira. Respondeu que nunca duvidou do seu captiveiro e que porisso sempre servio bem a seus Senhores sem que tivese praticado alguma fuga senão a prezente. Preguntoulhe porque tendo ella sido sempre boa Escrava e servido bem a seus Senhores agora lhe tinha fugido de caza. Respondeu que tendo seu Senhor justado ao Carpinteiro Aniceto Ferreira Lopes para trabalhar nas Cazas que edeficou nesta villa e axandoce ella Interogada na mesma obra para Cuzinhar e fazer os mais serviços Nesessarios para o dito Carpinteiro e mais trabalhadores o mesmo Aniceto a entrou a ceduzir dezendo lhe que ella héra Liberta no Batismo e que elle sabe disso pela sua Certidão de Idade ese lhe oferecia para Cuidar na sua Liberdade e que por este principio lhe for alcanssando algum dinheiro que ella tinha adequirido de suas quitandas athe a quantia pouco mais ou menos de sete do Blas, e que afinal lhe dera um Papel dizendo ser asua Certidão de Batismo o qual tornou a receber no fim de tres dias a Conselhando-a que devia hir para Porto Alegre porque aqui se não poderia arumar e que ella Interogada Convencida de que odito Aniceto lhe falara verdade tratou com elle seguir para a dita Cidade e então elle lhe dice que seguice e se aprezentace a Joze Francisco Duarte que elle Aniceto Já lhe tinha enviado dinheiro e os Papeis para se lhe fazer o requerimento ao Senhor Prezidente. E que ela Interogada convencida de tudo a couza de dois mezes e meio se auzentou da Caza de seu Senhor siguindo a pé athe a Villa do Rio Pardo e dali embarcada athe Porto Alegre.
A pobre escrava iludida foi a pé até Rio Pardo e de lá embarcou para Porto Alegre atrás da sua liberdade! Tal trajeto, certamente eivado de toda sorte de situações, ganha aos olhos de hoje um caráter fantástico. Quanto tempo teria levado para percorrer a distância entre a Vila da Cachoeira e a Vila do Rio Pardo? Que tipo de obstáculos encontrou? Como e onde dormiu? Alimentou-se de que forma? Que suspeitas despertou, sendo uma cativa? Perguntas que o documento não responde, abrindo espaço para a imaginação dos leitores.
Em seu depoimento, Matildes contou que chegando em Porto Alegre procurou o indicado Joze Francisco Duarte que disse
qui não tinha recebido papeis nem dinheiro algum e que tinha recebido uma carta mais que não a achava. E que ella Interogada entrando no conhecimento de que tinha sido Lograda só esperava o momento de vir para caza de seu Senhor por ter procurado certificarce da Verdade athé pasando a Capela de Viamão e examinando o asento do seu Batismo que veio achar na Camara Ecleziastica da mesma Cidade de Porto Alegre, e que assim desemganada e aparecendo lhe ali seu Senhor moço Zeferino Jozé da Cunha com elle voltou a caza de seu Senhor onde se acha.
Triste a sina da escrava Matildes. Sonhando com a liberdade, saiu estrada afora. Frustrada em seu intento, só lhe restou voltar para casa e para o cativeiro. Mal ou bem, a casa de seu senhor era o seu único porto seguro.
Quanto ao sedutor da escrava Matildes, Aniceto Ferreira Lopes... Sumiu! Sabe-se lá se não foi aplicar o mesmo golpe em outra freguesia.
MR
em caza de morada do Juis de Pás Suplente o Capitão Bernardo Moreira Lirio onde Escrivão do seu Cargo adiante nomeado e asignado foi vindo e sendo ahi tão bem prezente o Capitão Jozé Raimundo da Cunha (...).
Primeira página dos Autos - Acervo Justiça |
Perguntado pelo juiz se a escrava era sua e a quantos anos, Jozé Raimundo respondeu que Matildes era de sua propriedade há 34 anos, havida por dote de sua sogra, D. Jacinta Maria de Jesus, viúva de Antonio Simoins Teixeira, e que estava desaparecida desde setembro de 1829. Inquerido sobre o motivo da fuga,
Respondeu que sabia que Niceto Ferreira Lopes a tinha ceduzido para a fuga dizendo-lhe que ella hera Liberta no batismo que elle Aniceto tinha vendido para Porto Alegre a Jozé Francisco Duarte a certidão de edade e dinheiro que dela tinha recebido para promover a sua Liberdade.
Passando a interrogar a escrava, acompanhada pelo curador para isto nomeado, Jozé do Prado Lima, o juiz perguntou-lhe se de fato havia sido escrava do casal da
Finada dona Jacinta Maria de Jesus e se tinha passado ao poder do suplicante e como. Respondeu que tinha sido Escrava de Joze Ramos morador na Capella de Viamão que dele passou ao poder de Dona Jacinta Maria de Jesus e que desta passou ao poder do Suplicante em dote por se aver cazado com dona Angelica filha da mesma Dona Jacinta Maria de Jesus.
O juiz perguntou ainda se durante todo esse tempo ela estava
serta de que hera captiva e como tal o servira. Respondeu que nunca duvidou do seu captiveiro e que porisso sempre servio bem a seus Senhores sem que tivese praticado alguma fuga senão a prezente. Preguntoulhe porque tendo ella sido sempre boa Escrava e servido bem a seus Senhores agora lhe tinha fugido de caza. Respondeu que tendo seu Senhor justado ao Carpinteiro Aniceto Ferreira Lopes para trabalhar nas Cazas que edeficou nesta villa e axandoce ella Interogada na mesma obra para Cuzinhar e fazer os mais serviços Nesessarios para o dito Carpinteiro e mais trabalhadores o mesmo Aniceto a entrou a ceduzir dezendo lhe que ella héra Liberta no Batismo e que elle sabe disso pela sua Certidão de Idade ese lhe oferecia para Cuidar na sua Liberdade e que por este principio lhe for alcanssando algum dinheiro que ella tinha adequirido de suas quitandas athe a quantia pouco mais ou menos de sete do Blas, e que afinal lhe dera um Papel dizendo ser asua Certidão de Batismo o qual tornou a receber no fim de tres dias a Conselhando-a que devia hir para Porto Alegre porque aqui se não poderia arumar e que ella Interogada Convencida de que odito Aniceto lhe falara verdade tratou com elle seguir para a dita Cidade e então elle lhe dice que seguice e se aprezentace a Joze Francisco Duarte que elle Aniceto Já lhe tinha enviado dinheiro e os Papeis para se lhe fazer o requerimento ao Senhor Prezidente. E que ela Interogada convencida de tudo a couza de dois mezes e meio se auzentou da Caza de seu Senhor siguindo a pé athe a Villa do Rio Pardo e dali embarcada athe Porto Alegre.
A pobre escrava iludida foi a pé até Rio Pardo e de lá embarcou para Porto Alegre atrás da sua liberdade! Tal trajeto, certamente eivado de toda sorte de situações, ganha aos olhos de hoje um caráter fantástico. Quanto tempo teria levado para percorrer a distância entre a Vila da Cachoeira e a Vila do Rio Pardo? Que tipo de obstáculos encontrou? Como e onde dormiu? Alimentou-se de que forma? Que suspeitas despertou, sendo uma cativa? Perguntas que o documento não responde, abrindo espaço para a imaginação dos leitores.
Em seu depoimento, Matildes contou que chegando em Porto Alegre procurou o indicado Joze Francisco Duarte que disse
qui não tinha recebido papeis nem dinheiro algum e que tinha recebido uma carta mais que não a achava. E que ella Interogada entrando no conhecimento de que tinha sido Lograda só esperava o momento de vir para caza de seu Senhor por ter procurado certificarce da Verdade athé pasando a Capela de Viamão e examinando o asento do seu Batismo que veio achar na Camara Ecleziastica da mesma Cidade de Porto Alegre, e que assim desemganada e aparecendo lhe ali seu Senhor moço Zeferino Jozé da Cunha com elle voltou a caza de seu Senhor onde se acha.
Última página dos Autos - Acervo Justiça |
Triste a sina da escrava Matildes. Sonhando com a liberdade, saiu estrada afora. Frustrada em seu intento, só lhe restou voltar para casa e para o cativeiro. Mal ou bem, a casa de seu senhor era o seu único porto seguro.
Quanto ao sedutor da escrava Matildes, Aniceto Ferreira Lopes... Sumiu! Sabe-se lá se não foi aplicar o mesmo golpe em outra freguesia.
MR
Fantástico relato.
ResponderExcluirDeus abençoe a Ucha ,sua paciência e talentos!!!Que história mais triste!E qtas mais?34 anos!!!
ResponderExcluir