Um documento do acervo da Justiça, mais especificamente um auto de corpo de delito feito em 16 de janeiro de 1832, mais do que um registro da sistemática da época, fornece, 185 anos depois do acontecido, detalhes do que uma casa comercial de fazendas oferecia à sua clientela e a forma como o proprietário recolhia a féria das vendas.
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1.ª folha do auto de corpo de delito - 16/1/1832 - Acervo documental de Justiça |
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Última folha do auto de corpo de delito |
Desde 1829 Cachoeira contava com uma casa comercial bastante sortida e de longe a maior da redondeza, propriedade de Antônio Vicente da Fontoura, figura proeminente na política da época. Eis que a peça judicial apresenta uma loja de fazendas, que vendia também outras mercadorias, pertencente ao estrangeiro Estevão Lombardo, presumivelmente o primeiro italiano a se estabelecer em Cachoeira, em que pese não haver registro de outro anterior.
Pois a loja de Estevão fora supostamente arrombada à noite, sem que do ato houvesse qualquer testemunha. O proprietário, ao chegar cedo à loja, antes do romper do sol, encontrou a porta aberta e dentro nenhum vestígio do arrombamento. No entanto, dera falta de muitas coisas:
(...) dinheiro de cobre tresentos mil reis em tres sacos sendo um saco de xita preta, e dois de Algodão Americano, que estavão debaixo do balcão, e assim mais tirarão de dentro de um Baul vinte dubloins de Espanha que estava dentro, em um pequeno saco de Algodãozinho que deixarão ficar e assim mais duas correntes de ouro, de relogio que vendia a vinte mil reis cada huma, e assim mais sinco relojos Ingleses que os vendia a quinze mil reis cada hum e duas correntes falças de dois mil reis cada hua, dés vestidos de senhora bordados de vinte mil reis cada hum, dés vestidos brancos de dés mil reis cada hum, doze vestidos de triquin preto de oito mil reis cada hum, dois chales grandes de seda a onze mil reis cada hum, duas duzias de Lenços de seda pequenos de sinco pratas cada hum, doze luvas grandes de seda de senhora a seis patacas o par, doze pares de sapatos de seda de senhora a seis patacas o par, huma caixinha de folha contendo dentro seis memorias, de ouro de dés mil reis cada huma doze pares de brincos de quatorze e dezesseis mil reis huns pelos outros, dois alfinetes de peito de diamante de doze mil reis cada hum, hum cordão de oiro de pescosso de senhora de doze mil reis, duas pessas de lenços brancos de mão de cruzado cada hum, hua duzia de meias de algodão de doze vintens cada hum e mais não disse.
Com a listagem dos bens furtados, Estevão Lombardo dá uma mostra riquíssima do tipo de produto que sua loja oferecia, especialmente às mulheres da época, permitindo visualizar os modelos por elas usados naqueles tempos... O quanto a seda era de fato um produto importante para a confecção de roupas, calçados e luvas; o ouro como adereço, os relógios pendurados em correntes e as bijuterias, descritas como correntes falsas. E fornece ainda um detalhe, o depósito de dinheiro em sacos de pano amarrados por barbante, algo impensado para hoje, tempo de transações virtuais e quase sem a utilização da moeda circulante. O tempo de Estevão era um tempo sem agências bancárias e cartões de crédito!
O documento não traz o endereço da loja, mas apresenta outra curiosidade, qual seja a de que o estrangeiro habitava e tinha comércio na casa do escrivão Antonio José de Almada, provavelmente locada para tal, e onde também morava outro escrivão, Lucio Ferreira de Andrade:
(...) em Casa de morada de Antonio Jose de Almada onde se acha o Estrangeiro Estevão Lombardo com sua loja de fazendas (...)
A casa que servia de moradia e endereço comercial de Estevão devia ter diversas portas na fachada, construção típica daqueles tempos:
Respondeu que lhe roubarão por aquella porta que não estando em casa de noite, quando chegou oje de manha achou aberta (...)
E a porta arrombada, a da loja, certamente ficava na esquina, conforme depoimento de uma das testemunhas, Lucio Ferreira de Andrade, morador do mesmo prédio:
(...) na noite para amanhecer para oje, desasseis do corrente, depois da meia noite, ouvio bulha na loja de Estevão Lombardo por ser na mesma sua casa e que não desconfiou ser robo, pensando ser o mesmo dono, e que levantando-se de manhan, vio a porta que sai para a rua travessa aberta (...)
E a porta arrombada, a da loja, certamente ficava na esquina, conforme depoimento de uma das testemunhas, Lucio Ferreira de Andrade, morador do mesmo prédio:
(...) na noite para amanhecer para oje, desasseis do corrente, depois da meia noite, ouvio bulha na loja de Estevão Lombardo por ser na mesma sua casa e que não desconfiou ser robo, pensando ser o mesmo dono, e que levantando-se de manhan, vio a porta que sai para a rua travessa aberta (...)
No dia 16 de janeiro, depois de serem ouvidas as testemunhas elencadas por Estevão Lombardo, que pouco ou nada acrescentaram, o juiz de paz Gaspar Francisco Gonçalves deu o seguinte despacho:
Julgo prossedente o Auto de Corpo de Delito que por impedimento meu foi feito pelo meu Delegado Correia de Oliveira e seja entregue a parte para procurar Seo Direito onde lhe convier ficando o traslado no Cartorio Cachoeira desasseis de Janeiro de mil oitocentos e trinta e dois = Gonssalves =
Como se vê, o arrombamento deu em nada... Mas não foi problema para Estevão Lombardo que seguiu prosperando em seu negócio. E o interessante é que, mais tarde, quando o juiz de paz Gaspar Francisco Gonçalves foi preso e levado para Porto Alegre durante a revolução farroupilha, ficou ele gerenciando os negócios de Gaspar.
MR
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