Pular para o conteúdo principal

Materializando o passado

O passado pode se materializar quando lemos um documento produzido há muito tempo. As palavras, com sua força expressiva, são capazes de descrever cenários, desvendar sentimentos. Por isto história e literatura são tão próximas e tão parceiras na reconstituição do tempo.


Esta é a sensação despertada por uma ata de sessão extraordinária da Câmara Municipal que registrou acontecimento festivo do dia 31 de janeiro de 1830, época em que a Vila Nova de São João da Cachoeira se constituía de poucas ruas, almas* e fogos**. Naquele dia, os vereadores saíram trajados de gala e se dirigiram à Igreja Matriz, depois participaram de uma procissão pelas ruas. A descrição do secretário que lavrou a ata é destes registros que de fato permitem que o passado ganhe corpo:

Ata de sessão extraordinária de 31/1/1830 - CM/OF/A-002
- fl. 36

CM/OF/A-002, fl. 36v - Acervo documental Arquivo Histórico

[Anotado na folha 36]
SeSsão Extra-Ordinaria do dia 31 de Janeiro 1830 =

Dada a hora, e feita a chamada achárão-se presentes Seis Senhores Vereadores, faltando com causa o Senhor Pinto.

Declarou o Senhor Presidente aberta a Sessão.

Leu o Secretario a Acta da antecedente, que ficou approvada.
Seguio a Camara vestida de Grande Galla, a Igreja Matriz, por entre concurrencia de pôvo; ali postada huma Guarda do Bacthalhão e Estrangeiros Numero vinte e trez, commandada por hum Cappitam, e hum Tenente, estando toda a Tropa ricamente vestida, se fizerão as continencias do custume; e o Muito Reverendo vigario de Capa d’Aspergé, veio á porta da Igreja receber a Camara. Tomando a Camara aSsento mais se arrebatou pela concurrencia do Povo, e a parte, que tomárão neste festejo. As Auctoridades, vestidas de Galla Grande coadjuvárão ao brilho; fazendo realizar a elegancia com que esteve ornada a Igreja; as Alfaias as mais ricas; as luzentas Bambicullas, que tremião; o Throno illuminado, fazião recuar a vista, sucumbir a imaginação, e expontaneamente apparecia a saptisfação geral. Então emtrou a Missa Solemne, emtoada pelo Muito Reverendo vigario, seguido da melhor Musica de Paiz; expoz-se o Senhor no Trono; e na sua Expozição, e segundo o custume a Tropa deu quatro salvas, sendo de trez descargas cada huma. Nam houve Sermão por falta de Orador. No fim se emtrou o Te Deum, solemnisado pela orquestra, e muzica, seguido de trez descargas: não faltando no fogo artificial de ar, cujo estrepido reSsoava de continuo; cujo fumo, formava como que huma nuvem dença.
Emtam se recolhêo a Camara, adiada a Sessão, e ás quatro horas da tarde, achando-se reunida a Camara na Salla das Sessoens, se encaminhou a Igreja Matriz, e depois das Venias do custume princi-
[Anotado na folha 36v]
principiou a ProciSsão, seguida de todas as Irmandades, Clero, e Nobreza; e apoz a Camara, e a Guarda, correndo a Villa se notárão as Ruas matizadas de flores, e folhagens, e as janellas guarnecidas ricamente, e occupadas pelo bello sexo, ornado emtam com elegancia, e os ares estrepidando de continuo com o fogo artificial.
Recolhida a ProciSsão, ao emtrar do Sol, se emSserrou o Sacramento; todos se recolherão, e chegando a Camara a Salla das Sessoens, Declarou o Senhor Presidente feichada a SeSsão extraordinaria.

E para constar se lavrou esta Acta, em que assignárão.

Eu João Jozé da Silva, Secretario a escrevÿ ---
[Anotado rente à margem direita]
Jozé Custodio Coelho Leal
Ignacio Roiz’. de Carv.o
Antonio Xavier da Silva
Joze Gomes de Oliveira
Gaspar Fran.co Glz.’
Manoel Alvares dos Santos Pessôa


CM/OF/A-002, fls. 36 e 36v


Esta postagem homenageia a nossa colega Maria Lúcia Mór Castagnino, a Ucha, cuja aposentadoria se impôs, privando-nos de sua presença e precioso auxílio. Muitos dos documentos da nossa história passaram por ela, traduzindo e materializando as informações do passado.

Ucha transcrevendo documento

*almas: pessoas, habitantes
**fogos: casas, lares

MR

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Casa da Aldeia: uma lenda urbana

Uma expressão que se tornou comum em nossos dias é a da "lenda urbana", ou seja, algo que costuma ser afirmado pelas pessoas como se verdade fosse, no entanto, paira sobre esta verdade um quê de interrogação!  Pois a afirmação inverídica de que a Casa da Aldeia é a mais antiga da cidade é, pode-se dizer, uma "lenda urbana". Longe de ser a construção mais antiga da cidade, posto ocupado pela Catedral Nossa Senhora da Conceição (1799), a Casa da Aldeia, que foi erguida pelo português Manoel Francisco Cardozo, marido da índia guarani Joaquina Maria de São José, é mais recente do que se supunha. Até pouco tempo, a época tida como da construção da casa era dada a partir do requerimento, datado de 18 de abril de 1849, em que Manoel Francisco Cardozo: querendo elle Suppl. Edeficar umas Cazas no lugar da Aldeia ecomo Alli seaxe huns terrenos devolutos na Rua de S. Carlos que faz frente ao Norte efundos ao Sul fazendo canto ao este com a rua principal cujo n...

Instituto Estadual de Educação João Neves da Fontoura - 90 anos

O mês de maio de 2019 está marcado por um momento significativo na história da educação de Cachoeira do Sul. No dia 22, o Instituto Estadual de Educação João Neves da Fontoura chegou aos seus 90 anos carregando, neste transcurso de tempo, desafios, dificuldades e conquistas. Muitas crianças e jovens passaram por seus bancos escolares, assim como professores e servidores dedicados à desafiadora tarefa educativa. A história do João Neves, como popularmente é chamado aquele importante educandário, tem vínculos enormes com seu patrono. Em 1929, quando a instituição foi criada com o nome de Escola Complementar, o Dr. João Neves da Fontoura era vice-presidente do estado e há pouco havia concluído uma gestão de grandes obras como intendente de Cachoeira.  Em 1927, ano em que Borges de Medeiros resolveu criar escolas complementares no estado para a formação de alunos-mestres, imediatamente João Neves empenhou-se para que uma destas escolas fosse instalada em Cachoeira, município p...

Série: Centenário do Château d'Eau - as esculturas

Dentre os muitos aspectos notáveis no Château d'Eau estão as esculturas de ninfas e Netuno. O conjunto escultórico, associado às colunas e outros detalhes que tornam o monumento único e marcante no imaginário e memória de todos, foi executado em Porto Alegre nas famosas oficinas de João Vicente Friedrichs. Château d'Eau - década de 1930 - Acervo Orlando Tischler Uma das ninfas do Château d'Eau - foto César Roos Netuno - foto Robispierre Giuliani Segundo Maria Júlia F. de Marsillac*, filha de João Vicente, com 15 anos o pai foi para a Alemanha estudar e lá se formou na Academia de Arte. Concluído o curso, o pai de João Vicente, Miguel Friedrichs, enviou-lhe uma quantia em dinheiro para que adquirisse material para a oficina que possuía em Porto Alegre. De posse dos recursos, João Vicente aproveitou para frequentar aulas de escultura, mosaico, galvanoplastia** e de adubos químicos, esquecendo de mandar notícias para a família. Com isto, Miguel Friedrichs pediu à polícia alemã...