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A Semana Santa de 1923

O passar do tempo se fez sentir nas comemorações da Páscoa, assim como em outros eventos culturais e religiosos. O que ocorreu há 100 anos já não ocorre da mesma forma  em nosso tempo, embora ainda os principais traços da tradição cristã estejam presentes nas celebrações e credos. Por outro lado, também os locais em que se desenrolaram as celebrações mudaram bastante no último século.

O jornal O Commercio de 4 de abril de 1923, em sua primeira e segunda páginas, traz as seguintes notas sobre a programação da Páscoa daquele ano:

Culto Catholico. Semana santa. - Com verdadeiro esplendor realizaram-se, na Igreja Matriz desta cidade, as festividades religiosas da semana santa.

Terça-feira penultima, ás 18 horas, após um pequeno chuvisqueiro, sahiu a procissão do encontro. O andor de Nosso Senhor dos Passos partiu da Igreja Matriz e o de Nossa Senhora das Dôres da Capella de São José. O encontro effectuou-se na Praça José Bonifacio, em frente á residencia da exma. sra. d. Ignacia Oliveira. Nessa occasião, da sacada da casa, pronunciou breve allocução o revmo. padre Luiz Scortegagna, vigario da parochia. Em seguida a procissão volveu a Igreja Matriz, onde entrou ás 20 1/2 horas.

Quinta-feira, ás 8 horas, entrou a missa cantada, na qual foi distribuida a sagrada communhão a cerca de 600 pessoas, entre as quaes muitos homens. Durante todo o dia houve guarda de honra official a Jesus sacramentado, prolongando-se até á meia-noite.

Á tarde, após o officio das Trevas, realizou-se a commovente cerimonia do Lava-pés, officiando o vigario  da parochia, lavando os pés a 12 meninos que representavam os 12 apostolos. Encerrou o acto o bello discurso do revmo. padre Agostinho Polster, coadjutor da parochia, mostrando quanto Jesus Christo nos deu com a instituição do sacramento da Eucharistia.

Sexta-feira santa, ás 8 1/2 horas começou a missa dos presantificados, na qual foi lida a paixão de Nosso Senhor, escripta por São João. Acabada a veneração da cruz, depois de descoberta, o revmo. padre Agostinho fez adequada instrucção, evidenciando o soffrimento e o amor de Christo Redemptor, falando sobre a gravidade do peccado e o valor da alma. Ás 18 horas, depois de cantado o officio das trevas, houve a procissão  de Jesus morto, que chamou a attenção em geral pela extraordinaria concurrencia e verdadeiro recolhimento e piedade de todos.

A artistica imagem de Jesus morto foi venerada na Igreja Matriz, até altas horas da noite.

No sabbado de Alleluia foram feitas todas as solemnidades que noticiamos, correspondentes ao dia. A missa de Alleluia, cantada pelo revmo. padre Agostinho, terminou ás 10 1/2 horas.

Domingo, ás 13 [sic] horas da madrugada, repiques dos sinos, foguetes e bombas annunciaram a procissão da Ressurreição que, nesta cidade, ao que consta, ha mais de 30 anos não se realizava. Ás 4 horas a Igreja Matriz estava repleta de exmas. familias e de numerosos homens que, carregando a imagem do Sagrado Coração de Jesus, processionalmente percorreram algumas ruas da cidade, regressando em seguida á Igreja Matriz. Houve muita concurrencia, inesperada nessa hora, muita ordem, muito recolhimento e muita piedade.

A seguida entrou a missa solemne. (...)

As procissões foram abrilhantadas pela banda musical Estrella Cachoeirense. (...)

De domingo de Ramos até domingo da Ressurreição inclusive, na Igreja Matriz foram distribuidas approximadamente mil communhões.

Igreja Methodista. - Desde quarta-feira até domingo, realizaram-se, diariamente, ás 20 horas, conferencias religiosas na Igreja Methodista desta cidade, de que é director espiritual o revmo. sr. pastor Derly de A. Chaves.

Essas conferencias, que versaram sobre a semana santa, estiveram muito concorridas.

Culto evangelico. - No templo da Communidade Evangelica, no Bairro Rio Branco, houve culto divino á noite de sexta-feira da Paixão, seguido da cerimonia da santa ceia, e serviço divino na manhã de domingo de Paschoa, pregando o revmo. sr. pastor Germano Dohms, director espiritual da communidade. 

A Cachoeira de 1923 tinha outra paisagem. A Igreja Matriz ainda não tinha passado pela grande reforma que modificou seu aspecto externo. A praça em que se encontra, hoje chamada Dr. Balthazar de Bem, era então Praça Almirante Tamandaré. Nela não existia ainda o Château d'Eau, tampouco a configuração em três grandes canteiros que tem. A Intendência, hoje Museu Municipal, abrigava os poderes executivo e legislativo e, na outra esquina, o prédio que fora do Teatro Municipal abrigava o Colégio Elementar Antônio Vicente da Fontoura e o Fórum.

Igreja Matriz antes da grande reforma de 1929 - Museu Municipal

A Praça José Bonifácio, para onde se dirigiu a procissão do encontro também tinha uma configuração completamente diferente da atual. Havia lá o Mercado Público, o Cinema Coliseu Cachoeirense e a cobertura vegetal ainda era de paineiras. Da Capela de São José, de onde partiu uma procissão de fiéis para encontro com os oriundos da Igreja Matriz, nem resquícios há mais. A casa de Ignacia Oliveira, de cuja sacada manifestou-se o padre Luiz Scortegagna, foi por muitíssimos anos palco de discursos de toda natureza. Hoje nem sinal daquele bem de valor histórico, cultural e arquitetônico.

Antiga Capela de são José - Arquivo Histórico


Casa de Ignacia Oliveira (dos Arcos) - Museu Municipal

O templo da Comunidade Evangélica não existia ainda, de forma que os luteranos realizavam seus cultos na casa paroquial inaugurada em 1913.

Antiga Casa Paroquial - COMPAHC

Enfim, muitas foram as mudanças neste último século. Quanto aos ritos religiosos, cada um, professando sua fé, poderá fazer seu julgamento.

MR

Comentários

  1. Que maravilha teres retomado as postagens no blog. Não pare. São esses registros que mantêm viva a nossa história. Obrigado, pelo teu incansável trabalho e desprendimento pessoal. Obrigado, por seguires o teu coração, em vez de olhares para o bolso e correr atrás do tal piso salarial. Fique onde tu és feliz. E onde tu te realizas profissionalmente.
    Isso não tem dinheiro que pague, podes me acreditar. Força aí, Miriam Ritzel.

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  2. Uma incrível viagem no tempo.
    É isto que o primoroso texto de MR nos permite. Uma passagem para uma histórica e próspera Cachoeira do Sul. Pelos relatos dos cerimoniais religiososos, uma época em que o significado da Páscoa era vivenciado de forma plena pelos cristãos, sem os apelos comerciais e as distrações tecnológicas contemporâneas.
    Muito grato Mirian Ritzel por este nobre ofício de manter a nossa História viva, e de nos permitir conhece-lá.

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