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Chuvas e enchente

O  Rio Grande do Sul está vivendo uma situação dramática em razão das últimas chuvas, verdadeiros dilúvios que têm se abatido sobre o estado, ceifando vidas e patrimônios como nunca antes visto.

Rio Jacuí cheio - set. 2023 - claudemirpereira.com.br

Enchentes são comuns na nossa história e o rio Jacuí, a despeito da maravilha que representa para o município, já se tornou avassalador em vários momentos, representando perigosa ameaça.

Na imprensa local é possível recolher informações sobre eventos desta natureza em outras épocas. No jornal Rio Grande, edição de 27 de agosto de 1911, o registro de uma grande enchente:

A enchente - Assume grandes proporções. Chovendo quasi intermitentemente desde o dia 16, as aguas do Rio Jacuhy extrevasaram cobrindo as varzeas.

Diversas emprezas de arroz estão cobertas d'agua, com os galpões inundados.

Muitos moradores nas margens do rio foram obrigados a abandonar suas habitações.

A casa do nosso amigo Tenente Eloy Lisbôa e do sr. Ezequiel Florence, situadas á margem direita do Jacuhy, foram invadidas pelas aguas.

O transito para o 2.º districto e Caçapava, acha-se interrompido.

A varzea de N. S. da Conceição é verdadeiro lençol.

O armazem da Companhia Becker, na praia, e outros se acham cercados d'agua.

Temem-se grandes prejuizos aos emprezarios de arroz.

Felismente parece não ter havido desgraças pessoaes.

Das immediações do Hospital de Caridade aprecia-se o belo aspecto da enchente.

Em 1912, nova enchente assolou Cachoeira, provavelmente com maiores proporções do que a anterior. O relato feito pelo jornal O Commercio, que circulou em 10 de janeiro daquele ano, permite associar o que os cachoeirenses viveram naquela época com o que os flagelados de vários municípios do Rio Grande do Sul estão vivenciando agora:

Chuvas e enchente. - Com as ultimas chuvas cahidas neste municipio e na região serrana, o rio Jacuhy e os seus affluentes cresceram extraordinaria e pavorosamente, inundando quasi todas as lavouras de arroz do nosso municipio.

A enchente, que começou a declinar nas ultimas horas da tarde de sabbado, 6 do corrente, sobrepujou em 3 palmos de altura a penultima.

Nos dias 31 de Dezembro e 1.º de Janeiro choveu torrencialmente, e á tarde de sexta-feira ultima a atmosphera estava novamente carregada, começando a chover fortemente pelas 7 horas.

A's 7 e poucos minutos a chuva, acompanhada de vento e descargas electricas, redobrou de intensidade. A agua cahia em quantidade prodigiosa, formando cursos pelas vias publicas e inundando os terrenos de pouco declive.

O arroio Lava-pés cresceu de modo a passarem as aguas por cima do pontilhão da rua Saldanha Marinho. A cervejaria do sr. Rodolpho Homrich sita á margem direita do Lava-pés, foi invadida pelos fundos, e a casa e residencia da familia, bem como o armazem da firma Cunha & C., foram inundados pelas aguas pluviaes emanadas do sul e do norte da rua 7 de Setembro, que causaram não pequenos prejuizos. 

A impetuosidade das aguas, que em diversos pontos da cidade subiram das sargetas aos passeios, causou muitos damnos nas vias publicas, formando irregularidades e excavações no terreno. 

Na rua 1.º de Março uma faisca rompeu um fio da luz electrica, sendo encontrado morto um cachorro que passou sobre o mesmo. Na rua Saldanha Marinho um estrondo apagou seis lampadas da mesma luz, e o temporal derribou parte do muro da propriedade do nosso amigo dr. Gustavo Doss.

Uma casa sita á rua Ramiro Barcellos, em que residia o sr. Julio Ferreira, esboroou-se pelas 8 horas, bem como outra que lhe fica immediata, não havendo, felizmente, desastre a lamentar.

Perto do logar denominado Capão da Caixa d'Agua, situado a nordeste da cidade, á beira da via ferrea, corre uma sanga, a cuja margem reside o sr. Alberto Meinhardt.

Com a quantidade de chuva a sanga tomou quasi repentinamente um volume nunca observado, levando cercas, plantas da horta, gallinhas, etc. e inundando o interior da casa.

O sr. Meinhardt e sua exma. esposa tomaram os filhos nos braços, afim de seguirem para uma collina proxima, e nessa occasião foi arrebatada dos braços de seu pai a menina Annita, de 5 annos de idade, aleijada dos pés desde nascença, que foi levada na impetuosidade da corrente, pela escuridão da noite, sendo achada morta no dia seguinte, nas proximidades do pontilhão da estrada de ferro.

A chuva continuou, sempre forte e ininterruptamente, até um pouco depois das 8 1/2, diminuindo então de intensidade.

A familia do sr. Meinhardt ficou, no matto que reveste a collina proxima, até pelas duas da madrugada, hora em que baixaram as aguas, permittindo-lhe voltar á casa.

- Até hontem o rio Jacuhy havia baixado consideravelmente, mas á tarde choveu novamente, continuando a atmosphera carregada.

Casa Cunha & Cia. - Rua 7 de Setembro - Coleção Martinho Schünemann - MMEL

Na edição seguinte do jornal O Commercio, que circulou em 17 de janeiro de 1912, notícias alvissareiras sobre a enchente:

Fim da enchente. - Desde domingo, 14 do corrente, o rio Jacuhy está mais ou menos no seu volume normal, tendo deixado de chover nos ultimos dias.

As aguas, que durante 5 dias cobriram quasi a totalidade das lavouras sitas á margem desse rio, que, segundo nos informam, apodreceram em grande parte.

Menores prejuizos tiveram os lavradores das margens dos arroios Irapuá, Capané e Pequiry, onde a submersão do arroz foi menos demorada.

Naquele mesmo ano de 1912, no dia 17 de março, houve uma reunião de lideranças locais no salão da Intendência para tratativas de construção de uma ponte no Jacuí, obra necessária para não isolar o município e permitir o escoamento da sua produção e mobilidade. O lugar pretendido para construção da ponte era, já naquele tempo, o da Cachoeira do Fandango. Certamente a grande enchente daquele início de 1912 acelerou a união dos esforços, pois a navegação, então franca no Jacuí, teve que ser interrompida e a inexistência de uma ponte junto à cidade literalmente provocou um grande isolamento. Mas não foi ainda naquela oportunidade que o intento se fez vencedor.

Outras enchentes vieram, avassaladoras como a de 1941, até então a mais drástica que a cidade viveu. Mas os tempos são outros, as agressões à natureza mais contundentes. 

Grande Engenho Central sob as águas junto ao porto da Rua Moron (1941) - MMEL

Tempos borrascosos serão daqui para frente mais e mais frequentes, restando-nos rever nossos espaços e ações para que as consequências possam ser menos graves.

MR

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