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Série Documentos da imigração alemã em Cachoeira: um registro jornalístico do ano do sesquicentenário

Há 50 anos o Jornal do Povo registrou a passagem dos 150 anos da imigração alemã em texto produzido por Leontino Roos. O articulista traça um panorama histórico do Rio Grande do Sul à época, registra a chegada dos primeiros imigrantes alemães, em julho de 1824, e discorre sobre o seu legado. 

No ano em que comemoramos os 200 anos da imigração alemã no estado, enfocando a repercussão em Cachoeira do Sul, importante rememorar tão detalhado registro.

150 anos de colonização alemã no R.S.

O primeiro presidente nomeado para a Província do Rio Grande do Sul foi o desembargador José Feliciano Fernandes Pinheiro, futuro senador do Império e Visconde de São Leopoldo, que foi empossado no dia 8 de março de 1824. Esse ilustre homem público, emérito autor dos anais Província de São Pedro, foi o primeiro organizador da colônia alemã em nossa terra. Escolhido para comandante das armas, foi o legendário gaúcho general José de Abreu.  Pela constituição de 1824 a província seria administrada por um presidente nomeado pelo governo central. 

Foi no governo do Visconde de São Leopoldo que ocorreu um acontecimento histórico da mais larga projeção no futuro do Rio Grande. Uma nova força se incorporava na jovem província.

Visconde de São Leopoldo - objdigital.bn.br

A 18 de julho de 1824 fundeava no porto da capital o bergantim Protector, trazendo os primeiros colonos alemães, que o Imperador destinara para povoarem a fazenda do linho cânhamo nesta província. José Feliciano, então Presidente do Rio Grande do Sul, foi visitá-los a bordo e pessoalmente tomou todas as providências para que tivessem todo o agasalho e cuidadoso tratamento. Dias depois seguiam para a Real Feitoria (depois São Leopoldo) todos os colonos que bem depressa começaram a emprestar à província o trabalho honesto de colonização.

Desembarque dos imigrantes alemães em São Leopoldo - 25/7/1824
- Quadro de Carl Ernst Zeuner

Os primeiros imigrantes somavam 38 pessoas, inclusive um menino nascido em viagem e aqui batizado. Sobressaía-se a todos por um conjunto de qualidades positivas, o Dr. João Daniel Hillebrandt, homem culto e de sólido caráter, a quem a colônia alemã e principalmente o município de São Leopoldo devem os mais valiosos serviços. Hillebrandt foi médico e administrador da colônia, presidente da Câmara Municipal e coronel da Guarda.

Segundo as condições estipuladas pelo governo imperial, cada família receberia uma gleba de terra com cerca de 78 hectares, vacas, cavalos, porcos, galinhas e o auxílio de 160 réis diários por pessoa no primeiro ano e de 80 réis no segundo, além da isenção de qualquer imposto durante os primeiros 10 anos.

Seriam os colonos considerados súditos do Imperador do Brasil e não poderiam alienar as terras senão depois de 10 anos.

Contudo, graças à capacidade do Presidente da Província, Visconde de São Leopoldo, os imigrantes puderam, sem mais demora, iniciar suas atividades. Aquela autoridade mandou fornecer-lhes alimentos, vestuários e ferramentas. Determinou também que os escravos ainda restantes na antiga Feitoria auxiliassem os colonos na construção de seus arranchamentos.

Naquele tempo o progresso no Rio Grande do Sul só poderia se alçar ao longo das águas navegáveis, únicas estradas para o transporte de mercadorias. Era o canal da Lagoa dos Patos, São Gonçalo, o Guaíba, o Sinos, o Caí, o Taquari, o Gravataí e o Jacuí, até Cachoeira do Sul.

As lagoas litorâneas de Torres e Osório não ofereciam as mesmas vantagens, por serem estanques, sem comunicações com os centros consumidores, nem com a Barra do Rio Grande, nossa única saída para o mar. As povoações que se formassem, distantes daqueles caminhos d'água, não poderiam exercer o comércio e o intercâmbio a não ser pelo processo morosíssimo do cargueiro e da carreta, somente possíveis para os transportes de pequenos pesos e volumes. Daí a disparidade de crescimento e de fortuna entre as colônias que se situaram às margens do tributário do Guaíba, servidas por uma admirável rede fluvial e aquelas que se isolaram nos interiores distantes. Contudo, estas eram como aquelas, constituídas de elementos e empreendedores.

Por ordem do governo central, a imigração alemã foi interrompida em 1830 e recomeçada em 1844. Até 1858 haviam 1.309 famílias, num total de 7.991 pessoas.

A produção da Colônia de São Leopoldo teve um desenvolvimento tal que, já em 1842, exportava produtos variados da lavoura e da indústria no valor de 247 contos, 286 mil e oitocentos réis, quantia muito elevada, considerando o valor da moeda na época e a exigüidade da população.

Os imigrantes vindos da Europa Central, de um sistema diferente de vida, foram lentamente se acostumando às circunstâncias locais e adotando certos costumes dos rio-grandenses.

Os resultados de aumento de população e riqueza na província foram surpreendentes. De região quase exclusivamente pastoril, o Rio Grande apresentava-se, em poucos anos, com uma população agrícola superior às suas necessidades de consumo, sem falar no vigoroso surto industrial que começava a lançar seus produtos em concorrência com o comércio exterior. 

Só num ponto o governo falhou redondamente. Foi o imperdoável abandono em que deixou a instrução primária, o mais eficiente meio ao seu alcance para levar aos jovens teuto-brasileiros o conhecimento da língua portuguesa. Porque não há o que tergiversar sobre o idioma ser o melhor instrumento de comunhão e identidade entre os filhos da mesma pátria. 

Em 1858 havia na colônia de São Leopoldo três escolas públicas e 27 particulares. Destas últimas apenas uma, situada na vila e destinada exclusivamente ao sexo feminino, ensinava em língua portuguesa. As demais 26, todas mistas, eram regidas por professores que ignoravam a língua falada no Brasil. Resultou disso que num total de 1.031 alunos freqüentando escolas, apenas 103 recebiam ensinamento da língua portuguesa. 

Dificuldades foram encontradas para colonizar novas glebas de terra, como Missões, São Pedro do Sul, Taquara do Mundo Novo, Torres, São Pedro D'Alcântara, Três Forquilhas, Caí, Taquari e outras regiões, principalmente os ataques dos selvagens habitantes na Serra Geral e Vale do Jacuí. O primeiro deu-se a 26 de fevereiro de 1829, quando três colonos foram mortos e um ferido a flecha. O segundo foi a 8 de abril de 1831, nele morrendo também três colonos. Neste ataque os índios raptaram uma menina, resgatada meses mais tarde em cima da serra, a 15 de maio do mesmo ano. O ataque se repetiu com redobrada violência, sendo mortos onze, entre homens e mulheres, e feridos três. Depois desse, em face das medidas defensivas adotadas, houve grande trégua. Os índios retraíram-se para as encostas da serra. E em 8 de janeiro de 1852, na colônia de Taquara do Mundo Novo, surpreenderam a casa de um colono, assassinando-o e raptando-lhe a mulher, uma filha casada e dois menores. A reação foi imediatamente comunicada ao governo central e ao presidente da província, Visconde de São Leopoldo. As autoridades mobilizaram escoltas, quase todas constituídas de caboclos e vaqueanos dos matos, habituados à caça e conhecedores dos hábitos selvagens. Em março seguinte os índios foram surpreendidos, sendo retomadas as pessoas raptadas.

Os homens morrem e desaparecem, mas seus atos sobrevivem.

Leontino Roos

O olhar de Leontino Roos sobre a experiência com os imigrantes alemães no estado dá a dimensão do quanto o Rio Grande do Sul foi impactado com as levas imigratórias, sem descuidar também de abordar aspectos que deveriam ter sido melhor analisados e enfrentados pelas autoridades da época. A educação, por exemplo, assim como o contato com os povos originários, se tratados de outra forma, teriam certamente produzido resultados muito mais satisfatórios.

MR

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