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Cachoeira praça de guerra - conflito entre soldados em 1924

Há 100 anos, numa noite fria do início do mês de agosto do ano de 1924, Cachoeira viu-se sobressaltada por um intenso tiroteio em frente da Igreja Matriz e da Intendência Municipal, restando morto um cidadão e feridos outros dois. A então Praça Almirante Tamandaré* literalmente virou uma praça de guerra, deixando a população em sobressalto.

Igreja Matriz - MMEL

O jornal O Commercio, em sua edição de 6 de agosto de 1924, à página 2, traz a descrição dos fatos:

Graves successos

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Conflicto entre soldados do Exercito e do Corpo Provisorio

Durante a fria noite de domingo ultimo a nossa cidade foi theatro de graves successos, que passamos a descrever em linhas geraes, segundo o que conseguiu colher a nossa reportagem.

Já de algum tempo a esta parte, notava-se uma certa rivalidade entre soldados do 3.º Batalhão de Engenharia, aqui aquartelado, e os do Esquadrão do Corpo Provisorio da Brigada Militar.

Sabbado ultimo houve mesmo uma troca de palavras pouco amaveis entre um sargento do referido Corpo Provisorio e um grupo de soldados do 3.º Batalhão, discussão a qual, ao que parece, foi a causa da explosão dos animos, já de si exaltados.

Domingo, entre as 8 e 8 1/2 horas da noite, segundo nos relatou o dr. Sensurio Cordeiro, delegado de policia, 11 soldados do 3.º de Engenharia encontraram, na rua 1.º de Março, nas immediações da pensão de Gasparina Xavier, 3 soldados do Corpo Provisorio, acompanhando-os, a proferir palavras vexatorias, até ao quartel do referido Provisorio, que fica apenas a uma quadra de distancia daquele ponto.

Os soldados do Exercito, relatou a mesma autoridade, vinham desarmados, e pretendiam entrar no quartel, quando o esquadrão dos Provisorios reagiu, ouvindo-se tiros com arma de fogo, do que resultou a morte do anspeçada** João Mello, do 3.º de Engenharia.

Os camaradas de João de Mello levaram o seu corpo para o necroterio.

Pelas 10 horas, começou um desusado movimento na cidade: eram os soldados do 3.º Batalhão de Engenharia, em sua quasi totalidade, que, tendo arrombado a arrecadação, e se apoderado das munições, vinham entrando na urbs, sedentos de lucta, no intuito de vingarem a morte de seu companheiro de armas. 

Em poucos minutos transformaram a cidade numa praça de guerra, collocando sentinellas nos pontos por onde poderiam ser surprehendidos pelo inimigo.

Sabedor da occurrencia, o sr. capitão Justino Franco, acompanhado do dr. Sensurio Cordeiro, dirigiu-se, com toda presteza, á Praça Almirante Tamandaré, afim de conseguir a retirada dos seus commandados e o restabelecimento da ordem.

Foi mal succedido, porém, ao cumprimento de seu dever, pois immediatamente uma bala attingiu-lhe um lado do pescoço, vindo a sahir no queixo, cujo osso fracturou.

Essa mesma bala, ao que parece, feriu levemente num hombro o tenente Ranulpho Carneiro, que estava commandando o Corpo Provisorio, na auzencia do respectivo capitão, o qual se achava em Porto Alegre.

Pouco depois, por entre palavras de desafio aos soldados do Corpo Provisorio, que encerraram-se no seu quartel, para poderem eficazmente defender-se, ouvindo os gritos dos soldados do Exercito, que os incitavam a que sahissem, o que seria expôr-se á morte voluntaria e certa, em vista da grande superioridade numerica dos atacantes, começou cerrada e intensa fuzilaria. 

Os atacantes, calculados em numero de 150 a 200, postaram-se no jardim da praça e defronte á Igreja Matriz, de onde atiraram nos edificios do quartel, da Intendencia e do Forum.

Tomando todas as cautelas, cercaram a quadra, para que ninguem pudesse transitar ou fugir.

No salão principal da Intendencia a fuzilaria, entrando pelas janellas, produziu estragos no cofre de ferro, no qual entraram e ficaram alojadas algumas balas.

Uma bala, entrando pela janella, passou, furando vidros, pelas secções da portaria e da contadoria, ficando na secretaria.

Na frente desses edificios houve muitos estragos produzidos por balas.

A fuzilaria durou mais de duas horas, sendo calculados em cerca de 3.000 os tiros que deram os soldados do Exercito.

O Corpo Provisorio pouco atirou, pois achavam-se poucos soldados no quartel e não estavam prevenidos de munições.

O tiroteio durou até quasi uma hora da madrugada de segunda-feira. 

No dia seguinte, a cidade se viu alarmada com o que houve, dirigindo-se multidões ao palco do tiroteio para verificar os estragos promovidos.  À noite, com medo de novo ataque, as pessoas recolheram-se cedo às suas casas, ficando a Avenida das Paineiras*** praticamente vazia. Na frente da Intendência Municipal, muitos cidadãos se reuniram, dispostos à defesa daquele próprio municipal.


Edifício do Fórum e do Colégio Elementar (1922) - fotos de O Rio Grande do Sul,
de Alfredo R. da Costa

Felizmente novo confronto não se verificou, lamentando todos a morte de João Mello e do capitão Justino Franco, que havia sido levado a Santa Maria para sofrer cirurgia. A triste nova de não ter ele resistido ao ferimento chegou à cidade no dia 7 de agosto. 

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*Praça Almirante Tamandaré: denominação da Praça Dr. Balthazar de Bem até o final de 1924.

**anspeçada: antigo posto militar entre soldado e cabo. 

***Avenida das Paineiras: trecho da Rua 7 de Setembro fronteiro à Praça José Bonifácio.

MR

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